A Guerra do Golfo ilustrou bem o guia de princípios pelos quais se regem os Estados Unidos, como poderemos ver claramente, se levantarmos o véu da propaganda. Quando o Iraque invadiu o Kuwait, em agosto de 1990, o Conselho de Segurança da ONU imediatamente condenou o Iraque e lhe impôs severas sanções. Por que razão reagiu a ONU tão prontamente e com uma firmeza tão sem precedentes? A aliança entre a comunicação social e o governo norte-americano tinha uma resposta padrão. Primeiro, disseram-nos que a agressão iraquiana era um crime singular e, portanto, merecia uma reacção singularmente dura. "A América está onde sempre esteve - contra a agressão, contra todos aqueles que usam da força para substituir o império da lei" - assim fomos informados pelo presidente Bush - o invasor do Panamá e único chefe de Estado condenado pela Corte Internacional pelo uso ilegal da força (a condenação da Corte deveu-se ao ataque norte-americano contra a Nicarágua). A comunicação social e as classes instruídas repetiram obedientemente a lição ditada pelo seu líder, curvando-se em reverência à grandiosidade dos seus "altos princípios". Segundo, essas mesmas autoridades declararam, em coro, que finalmente a ONU estava agora a funcionar como fora planeada. Eles argumentavam que isso era impossível de acontecer antes do fim da Guerra Fria, quando a ONU se tornou ineficiente graças à dissidência da União Soviética e à estridente retórica anti-ocidental do Terceiro Mundo. Nenhum desses argumentos resistem, mesmo por um instante, a um exame mais minucioso. Nem os EUA e nem os demais países aliados estavam a sustentar algum alto princípio que fosse no Golfo. O motivo dessa resposta sem precedentes a Sadam Hussein não foi a sua brutal agressão, mas sim por ele ter pisado em falso.
Sadam Hussein é um gangster assassino exactamente como era antes da Guerra do Golfo, quando ele era nosso amigo e sócio comercial favorito. A sua invasão ao Kuwait foi certamente uma atrocidade, porém dentro dos padrões de outros crimes praticados pelos Estados Unidos e seus aliados, e nunca tão terrível quanto as que ocorreram em outras regiões. Por exemplo, a invasão da Indonésia e a anexação de Timor Oriental, que alcançaram proporções próximas às de um genocídio, devido aodecisivo apoio dos EUA e de seus aliados. Talvez um quarto dos setecentos mil habitantes tenham sido mortos, uma carnificina superior à ocorrida em Pol Pot, em relação à população, naquele mesmo período. O nosso embaixador na ONU naquela época (hoje senador por Nova York), Daniel Moynihan, assim explicou a sua façanha na ONU em relação a Timor Oriental: "Os EUA queriam que as coisas ocorressem justamente da forma como ocorreram, e trabalharam para isso. O Departamento de Estado desejava que a ONU comprovasse a sua total ineficácia em quaisquer medidas que fossem empreendidas por ela. Esta tarefa foi dada a mim, e eu cumpri-a com considerável sucesso”. O ministro das Relações Exteriores australiano justificou a aquiescência do seu país na invasão de Timor Oriental (e a participação com a Indonésia no roubo das ricas reservas de petróleo de Timor) dizendo simplesmente que "o mundo é um lugar muito injusto, repleto de exemplos de conquistas pela força". Quando o Iraque invadiu o Kuwait entretanto, o seu governo fez uma ressonante declaração, afirmando que "os países maiores não podiam invadir os menores e saírem ilesos".
Nenhum limite do cinismo perturba a equanimidade dos moralistas ocidentais. Quanto à ONU estar finalmente funcionar como fora planeada, os factos são claros - mas absolutamente obscurecidos pelos guardiães da correção política, que controlam com mão-de-ferro os meios de expressão. Por muitos anos, a ONU tem sido bloqueada pelas grandes potências, primeiramente pelos EUA - não pela União Soviética ou pelo Terceiro Mundo. Desde 1970, os Estados Unidos têm vetado muito mais resoluções no Conselho de Segurança do que as outras nações (a Inglaterra em segundo lugar, a França em terceiro e a URSS em quarto). A nossa história na Assembleia Geral é semelhante. E a "retórica estridente antiocidental" do Terceiro Mundo resulta geralmente numa chamada para acatar a lei internacional, uma barreira lamentavelmente frágil contra a pilhagem dos poderosos. A ONU foi capaz de responder à agressão iraquiana porque, pela primeira vez, os Estados Unidos permitiram que isso acontecesse. A severidade sem precedentes das sanções da ONU foi resultado de intensas ameaças e pressões dos Estados Unidos. As sanções tiveram uma oportunidade rara e boa de funcionar, não só por causa de sua dureza como também porque os habituais violadores de sanções - EUA, Inglaterra e França - as acataram, por mais estranho que pareça. Mas, mesmo depois de permitir as sanções, os Estados Unidos imediatamente bloquearam a saída diplomática ao despachar uma enorme força militar para o Golfo, à qual a Inglaterra se uniu, apoiada pelas ditaduras das famílias que governam os países petrolíferos no Golfo, com a participação apenas nominal dos outros países. Uma força menor de dissuasão seria suficiente para que as sanções tivessem um efeito significativo, o que um exército de meio milhão de soldados não poderia conseguir. O propósito da rápida concentração militar era eliminar o perigo de o Iraque sair de modo pacífico do Kuwait.
Por que uma solução diplomática era tão pouco atraente? Poucas semanas após a invasão do Kuwait, no dia 2 de agosto, as linhas básicas de um possível acordo político estavam tornar-se claras. A resolução 660 do Conselho de Segurança exigia a retirada imediata do Kuwait e também convocava negociações simultâneas para as questões de fronteira. Em meados de agosto, o Conselho de Segurança considerou uma proposta iraquiana de retirada do Kuwait naquele contexto. Parece que ali havia duas questões: primeiro, o acesso do Iraque ao Golfo, que teria implicado um arrendamento ou um outro controle sobre duas áreas pantanosas desabitadas, entregues ao Kuwait pela Inglaterra, na sua decisão imperial (que havia deixado o Iraque praticamente sem saída para o mar); segundo, a solução de uma disputa em torno de um campo de petróleo, que se estendia por duas milhas dentro do Kuwait, além de uma fronteira não estabelecida. Os EUA practicamente rejeitaram a proposta, ou quaisquer outras negociações. No dia 22 de agosto, sem revelar os factos acerca da iniciativa iraquiana (o que aparentemente era conhecido), o "The New York Times" informou que o governo Bush estava determinado a bloquear a "via diplomática" por temer que "a crise se difundisse" muito mais dessa maneira. (Os factos principais foram publicados uma semana mais tarde pelo diário "Newsday", de Long Island, mas a comunicação social, em geral, manteve silêncio sobre o assunto.) A última oferta antes do bombardeio, emitida pelos oficiais norte-americanos, a 2 de janeiro de 1991, exigia a total retirada iraquiana do Kuwait. Não havia nenhuma especificação sobre fronteiras, mas a oferta foi feita num contexto de acordos não específicos, "ligados" a outras questões: armas de destruição em massa na região e o conflito árabe-israelita. As últimas questões incluíam a ocupação ilegal do Sul do Líbano por Israel, em violação à resolução 425 do Conselho de Segurança, de março de 1978, que exigia a retirada imediata e incondicional do território invadido. A resposta dos Estados Unidos foi a de que não haveria diplomacia. A comunicação social, com exceção do "Newsday", omitiu os factos enquanto louvava os altos princípios de Bush. Os EUA recusaram-se a considerar as questões "articuladas" porque se opunham à diplomacia em todas essas questões. Isso ficou claro meses antes da invasão do Kuwait pelo Iraque, quando os EUA rejeitaram a oferta iraquiana de negociação sobre armas de destruição em massa. Na oferta, o Iraque propunha a destruição total tanto das armas químicas quanto das biológicas, se outros países da região também dessem fim às suas armas de destruição em massa. Sadam Hussein era, então, amigo e aliado de Bush, e, sendo assim, recebeu uma resposta significativa. Washington disse que acolheria bem a proposta iraquiana de destruir as suas próprias armas, mas não queria que isso ficasse ligado a outras " questões ou sistemas de armas”. Não houve menção sobre "os outros sistemas de armas". E havia uma razão para isso. Israel não só tem armas químicas e biológicas como também é o único país no Oriente Médio que possui armas nucleares (provavelmente cerca de duzentas). Mas "armas nucleares israelitas" é uma expressão que não pode ser escrita ou pronunciada por nenhuma fonte oficial do governo norte-americano. Essa expressão suscitaria perguntas sobre a ajuda ilegal a Israel, já que a legislação sobre ajuda estrangeira proíbe, desde 1977, o envio de recursos a qualquer país que desenvolva armas nucleares secretamente.
Independentemente da invasão do Iraque, os EUA têm bloqueado sempre todo e qualquer processo de paz no Médio Oriente, incluindo uma conferência internacional sobre o reconhecimento do direito dos palestinos à sua autodeterminação. Por vinte anos, os EUA têm sido praticamente os únicos a manter essa posição. Os votos na ONU mostram o seu padrão regular anual. Mais uma vez, em dezembro de 1990, bem no meio da crise do Golfo, a chamada para uma conferência internacional recebeu 144 votos a favor e dois contra (EUA e Israel). Isso nada teve a ver com o Iraque e o Kuwait. Os EUA também se recusaram inflexivelmente a permitir uma reversão da agressão iraquiana por meios pacíficos, como é prescrito pela Lei Internacional. Em vez disso, preferiram evitar a diplomacia e restringir o conflito à arena da violência, na qual é permitido a uma superpotência, não enfrentando qualquer oposição, prevalecer sobre um adversário do Terceiro Mundo. Como já foi exposto, os EUA executam ou apoiam regularmente a agressão, mesmo em casos muito mais criminosos do que a invasão do Kuwait pelo Iraque. Só o mais obtuso dos comissários teria dificuldade em entender esses factos, ou nos raros casos em que os EUA, quando se opõem a alguma acção ilegal de algum cliente ou aliado, ficam realmente muito felizes em actuar na articulação. Veja-se a ocupação da Namíbia pela África do Sul, declarada ilegal pela ONU, na década de 1960. Os EUA seguiram aí a "diplomacia silenciosa" e o "relacionamento construtivo" por anos, intermediando um acordo que deu à África do Sul ampla recompensa (inclusive o principal porto da Namíbia) por suas agressões e atrocidades, com a sua "articulação" estendendo-se para o Caribe, e os lucros bem-vindos para os interesses das empresas internacionais. As forças cubanas que haviam defendido Angola, vizinha da Namíbia, do ataque da África do Sul foram retiradas da região, mas os Estados Unidos, assim como no "acordo de paz" feito na Nicarágua em 1987, continuaram a fornecer o exército terrorista, apoiados pelos seus aliados (África do Sul e Zaire), preparando terreno para a "eleição democrática" estilo Nicarágua 1992, onde o povo foi para as urnas sob a ameaça de estrangulamento na economia e ataque terrorista se votasse da maneira errada. Enquanto isso, a África do Sul estava saqueando e destruindo a Namíbia, usando-a como uma base de ataque contra os seus países vizinhos. Somente entre os anos Bush e Reagan (1980-1988) a violência na África do Sul causou prejuízos em torno de 60 bilhões de dólares e a morte de mais de um milhão e meio de pessoas nos países vizinhos (excluindo a Namíbia e a África do Sul). Mas a classe dos comissários foi incapaz de ver esses factos e elogiou a admirável disposição dos altos
princípios de George Bush, quando ele se opôs a qualquer "articulação" - mas quando alguém pisa os nossos pés...
De modo geral, opor-se à "articulação significa um pouco mais do que rejeitar a diplomacia, que envolve sempre questões mais complexas. No caso do Kuwait, a posição dos Estados Unidos foi particularmente vaga. Depois de Sadam Hussein ter saído da linha, o governo Bush pressionou para que a capacidade de agressão iraquiana fosse eliminada (uma posição correcta, em contraste com a posição anterior de apoio às agressões e atrocidades de Sadam) e convocou um acordo regional para garantir a segurança na região. Bem, isso é articulação. O facto é que simplesmente os EUA temiam que a diplomacia pudesse "difundir a crise" e, portanto, bloquearam a "articulação" diplomática, durante todas as etapas da escalada da guerra. Ao recusar a diplomacia, os EUA conseguiram os seus objectivos fundamentais no Golfo. Nós estávamos preocupados com o facto de que os incomparáveis recursos de energia do Médio Oriente permanecessem sob o nosso controle e que os enormes lucros que eles produzem ajudassem a manter as economias dos EUA e do seu aliado britânico. Os Estados Unidos além disso reforçaram a sua posição dominante e ensinaram a lição de que o mundo é governado pela força. Com essas metas alcançadas, Washington continuou a manter a "estabilidade", barrando qualquer ameaça de mudança democrática nas tiranias do Golfo, dando tácito apoio a Sadam Hussein quando ele esmagou as revoltas populares dos xiitas, ao sul, a poucas milhas da linha americana, e depois a dos curdos, ao norte do país. Mas o governo Bush ainda não havia alcançado êxito naquilo que Thomas Friedman, seu porta voz e correspondente-chefe da diplomacia no "The New York Times", chama de "o melhor dos mundos: uma junta iraquiana de punho-de-ferro sem Sadam Hussein". "Isto", escreve Friedman, "seria voltar aos dias felizes em que o punho-de-ferro de Sadam... mantinha o Iraque unido, para satisfação dos aliados americanos, Turquia e Arábia Saudita", sem falar do chefe em Washington. A situação actual do Golfo reflecte as prioridades das superpotências que escondem as cartas, ou qualquer outra evidência que deve permanecer oculta para os guardiães da fé.
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