Embora sempre se deva aconselhar cautela em juízos deste tipo ou similares, atrevo-me a arriscar que vivemos uma das épocas - não, não é uma mera conjuntura - em que aquilo a que muitos, de uma ou de outra forma, temos chamado a crise da memória política e a profunda erosão da noção de processo histórico mais estão pesando na forma como os cidadãos estruturam a sua opinião sobre os factos, as políticas e os acontecimentos que sofrem ou decorrem quotidianamente diante dos seus olhos.
Com efeito, designadamente o cidadão comum que não tem uma relação intensa com a política e com o compromisso político só pode sentir-se perdido, aturdido e desorientado não apenas por força da vertiginosa sucessão de acontecimentos e medidas que se repercutem nos interesses e na sua vida e na do seu país mas também e sobretudo por anos e anos de informação fragmentada e descontextualizada e de intoxicação mediática sobre «fatalidades», «inevitabilidades» e «faltas de alternativas», ou seja um conjunto de sofismas martelados até à exaustão precisamente para assegurar a durabilidade e impunidade de opções políticas tomadas e para gerar um correspondente efeito de apatia, conformismo e resignação por parte dos cidadãos.
Dito de outra forma, basta reparar se é ou não verdade se hoje desfilam perante nós e desabam sobre nós, todos os dias, semanas e meses, notícias sobre problemas, escolhas, decisões, mais e mais medidas de austeridade que nos são apresentadas com se existissem e vivessem de per si e como se não tivessem nenhum nexo próximo ou distante com problemas, opções e decisões tomadas há cinco, dez ou vinte anos.
E, como será fácil de entender, são esta aposta no apagamento da memória colectiva e esta profundíssima rasura da noção de processo histórico que muito facilitam essa repugnante farsa da democracia que se pode exemplificar, por exemplo, com aqueles protagonistas políticos que hoje se apresentam como excelsos e ardorosos combatentes contra o défice ou a dívida mesmo que, no anterior exercício de funções governativas, para um e para a outra bastante tenham contribuído ou, outro exemplo, nos apareçam a verter lágrimas abundantes sobre o declínio da produção nacional, sobre o abandono dos nossos campos, o desaproveitamento do nosso mar ou a desertificação do interior deixando sempre na sombra que, ao longo de mais de 30 anos, as políticas que defenderam e conscientemente aplicaram a outro resultado não podiam ter conduzido.
E isto para já não falar no exemplo - da maior actualidade - de todos aqueles que hoje, sem pudor nem memória, seja à direita, ao centro ou no centro-esquerda, reconhecem com infinita calma que a adesão de Portugal ao euro afectou obviamente a competitividade da economia portuguesa (Passos Coelho dixit numa entrevista televisiva) ou que o euro padeceu de graves erros na sua criação e arquitectura, sempre escondendo e não assumindo que, durante mais de uma década, foram acriticamente deslumbrados com a moeda única e procuraram trucidar e isolar politicamente todos quantos se atreveram atempadamente a levantar reservas, a fazer perguntas, a exigir esclarecimentos e estudos, a esboçar ou desenhar alternativas.
Neste contexto, creio que poderá ter alguma utilidade chamar a atenção, sem preocupações de hierarquia e sem qualquer carácter exaustivo, para três grossas falsidades e truques duradouros que, tendo incidências diferenciadas, dada a indiscutível hegemonia que têm no discurso político ou na opinião publicada, têm desempenhado um papel importante na formatação das consciências de amplos sectores sociais.
A primeira e talvez a mais estruturalmente grave dessas falsidades consiste em apresentar todo um vastíssimo conjunto de elementos - desde certos efeitos mais perversos da globalização até às perdas de soberania nacional, desde «os compromissos que Portugal tem de honrar» até aos condicionalismos e constrangimentos externos, desde a ditadura dos mercados e a sua cegueira selvagem até ao nefando papel das agências de rating, passando - como sendo algo que está aí, ponto final, parágrafo, algo que nos foi imposto sem ligarem à nossa vontade, algo que foi caindo do céu aos trambolhões ou algo que, para os mais sofisticados, resulta apenas do normal fluir da evolução das «economias de mercado» (o termo «capitalismo» só teve uma relativamente breve vida e ressurgimento na imprensa mundial no auge da crise de 2008).
Segundo esta ficção ou coreografia minuciosamente estudada, dir-se-ia que, entre muitas outras, não houve uma coisa chamada liberalização dos movimentos de capitais (um artigo recente na insuspeita Le Nouvel Observateur detalhava o papel capital de Mitterand, Delors e outros socialistas franceses no avanço desse processo à escala da Europa), uma coisa chamada Tratado de Maastrich, uma coisa chamada criação da moeda única, uma coisa chamada negociações do Uruguay Round e criação da Organização Mundial do Comércio etc., etc. - ou seja todo um vasto conjunto de instrumentos e decisões de âmbito e efeitos supranacionais que só puderam ser concretizados na base da vontade de Estados soberanos e com as assinaturas manuscritas e a presença em pessoa de primeiros-ministros ou Presidentes da República, incluindo, como é bom de ver, de Portugal.
É por isso que de há muito sustento que, ao contrário do que é corrente, os únicos que tem legitimidade política e ética para falar de «condicionalismos» ou «constrangimentos externos» são os que a eles se opuseram e nunca por nunca ser aqueles que os defenderam, apoiaram ou subscreveram.
E é também por isso que, nesta matéria, gosto sempre de recordar a corajosa e franca afirmação feita numa sua obra de 1987, ainda muita coisa ia no adro, pelo economista francês (giscardiano) Lionel Stoleru. Propondo que se dê desconto àquele «nós», ela aqui fica para informação e reflexão: «Estes pretendidos «constrangimentos» internacionais somos nós próprios que os quisemos, somos nós próprios que os edificámos e somos nós próprios que, dia após dia, nos empenhamos em os desenvolver. Nós não temos mais liberdade de acção porque nós não quisemos mais ter liberdade de acção» (in L'Ambition Internationale).
Uma segunda importante falsidade teve largo curso em Portugal nos meses que precederam o pedido de demissão do Governo do PS dirigido por José Sócrates e ganhou novo fôlego com a política executada pelo novo governo do PSD dirigido por Passos Coelho e tem sido protagonizada por sectores ou personalidades do PS que, na ânsia de descobrirem ou inventarem territórios verbais de demarcação com a direita, passaram a dirigir as suas críticas às principais orientações no curso da presente crise à União Europeia e ao facto de a grande maioria dos países membros ter governos de direita.
Assim convenientemente embalados, esquecem-se obviamente da evidência historicamente comprovada de que todos os tratados e passos de evolução quer da então CEE quer da posterior UE se basearam nos consensos e acordos entre os partidos democratas-cristãos e os partidos social-democratas ou socialistas e que, desde o início da chamada «construção europeia» até hoje a história não regista nenhuma grave ou dramática confrontação entre essas duas famílias políticas. E até se esquecem concretamente que o próprio Mário Soares (personalidade que tem a especial característica de vergastar o neo-liberalismo em todo o mundo e nunca o ver quando está à frente dos seus olhos no nosso país, nomeadamente quando é aplicado pelo PS), num passado não muito distante, verberou criticamente o facto de ter sido precisamente nos anos em que os socialistas governavam 11 dos então quinze países da UE que as orientações neoliberais tiveram um maior impulso e desenvolvimento na Europa.
E, peço desculpa por qualquer coisinha, mas não posso fechar este ponto sem aludir a um inquietante e desastroso traço comum entre governos de direita e governos do PS em relação à União Europeia: é que sabe-se que Portugal é, de direito e com iguais direitos, membro pleno da União Europeia, mas isso nunca se nota nas orientações, nas atitudes e nas posições que os governos nacionais ali defendem, mais parecendo que Portugal é ainda, 25 anos depois de ter sido admitido, um país candidato à adesão.
A terceira falsidade consiste em fazer crer que todo o brutal e desumano conjunto de ataques, agressões, medidas de austeridade e retrocessos que já estava desenhado no memorando de entendimento entre a troika estrangeira - UE, BCE e FMI - e a troika nacional - Governo do PS, PSD e CDS - e tem vindo a ser alargado pelo actual governo PSD-CDS são uma mera decorrência da necessidade de conter o défice ou enfrentar o problema da dívida.
Ora, mesmo deixando generosa e benevolentemente de lado a minha (e a de muitos outros) convicção profunda que o conjunto das medidas adoptadas não resolverá nenhum dos problemas mais invocados, antes os agravará deixando um rasto de empobrecimento e destruição, a verdade é que há toda uma série de medidas adoptadas, impostas ou propostas pelo governo que não tem a mais pequena relação com o défice, com a competitividade ou com o pagamento dos encargos com a dívida, bastando para o efeito citar, a título de curto exemplo, a acrescida meia hora de trabalho diário, o corte de feriados, a baixa da TSU para as empresas, etc., etc.
Verdadeiramente o que está a acontecer é que, para a direita portuguesa e europeia e para os interesses de classe que representa, a crise, o défice e a dívida constituem uma oportunidade de ouro e um incomparável pretexto e cobertura para um desde sempre desejado e ansiado ajuste de contas com os avanços sociais, económicos e políticos filhos da Revolução de Abril, para estabelecer um ainda maior desequilíbrio nas relações entre o capital e o trabalho (veja-se como o princípio democrático básico da contratação colectiva é agora quase semanalmente espezinhado por decretos ou leis governamentais) e, la crème de la crème, e promover uma brutal, devastadora e mafiosa transferência de recursos financeiros e património da esfera pública para o grande capital.
Aqui chegado, entendo não dever ocultar dos leitores que, embora o escrevesse pouco, sou dos que, com fundamento em experiências políticas anteriores, muitas vezes pensaram que, dado que a sua etiqueta de «socialista» anestesiava largos sectores populares, o PS era o mais eficaz na execução da política de direita e que não seria fatal como o destino que um governo de direita fosse necessariamente mais longe na política de agressão aos interesses populares, precisamente por carência de base social de suporte e por passar a contar com uma mais viva e real oposição do PS e sobretudo dos seus eleitores.
Nunca sabemos como teria sido de outro modo e não pretendo ter razão a toda a força. Mas creio que as minhas conjecturas a tal respeito (que, sublinhe-se, não interferiam em nada nas minhas opções de voto e de pertença e projecto políticos) não se confirmaram por consequência de dois factores distintos de situações precedentes: a primeira é a própria situação de crise e a sua dramatização e interiorização em termos erróneos pela maioria do eleitorado; e a segunda é o facto de o PS estar amarrado ao e prisioneiro do memorando de entendimento com a troika, o que constitui uma parcial fonte de legitimação de parte substancial da política do PSD, que este naturalmente e convenientemente explora e continuará a explorar.
Sim, como o título propositadamente diz, estes são tempos de amnésia, de mentira e de retrocesso. Mas isso, nem deveria ser preciso dizê-lo, é apenas um escolhido ângulo de análise e um fragmento, ainda que importante, da realidade actual. Porque estes são também tempos de uma vasta e muito diversificada torrente de lutas, de uma indignação e consciencialização que tendem a crescer e não a diminuir, de um processo de confluência de descontentamentos, iniciativas e de capacidades combativas que podem não satisfazer os que querem resultados palpáveis e imediatos para o que é, pelas situações concretas e correlações de forças, díficil e eventualmente moroso, mas são a única alternativa honrosa à rendição e à resignação humilhantes e são a única esperança de salvar os portugueses e Portugal de um bárbaro retrocesso civilizacional.
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