Sim, as classes sociais podem medir-se aos palmos. A opinião é dos antropólogos que decidiram avaliar as diferenças na estatura dos alunos do Colégio Militar e da Casa Pia, duas instituições de Lisboa. As diferenças encontradas permitem tirar lições socioeconómicas, garantem os autores do trabalho nascido na Universidade de Coimbra, e que agora é publicado na revista "Economics and Human Biology". Os resultados mostram que as diferenças físicas entre os rapazes das duas instituições - a primeira rotulada como escola de famílias mais favorecidas e a segunda de crianças pobres - têm vindo a atenuar-se, embora continuem a ser significativas. Ao longo do último século os alunos do Colégio Militar somaram em média mais 6,4 centímetros de altura e mais 4,8 quilos do que os colegas da Casa Pia. O trabalho analisou mais de 4000 medidas recolhidas pelas duas instituições desde o início do século passado. A matéria-prima permitiu uma avaliação da evolução das estaturas por idades, entre os dez e 16 anos. Demonstrou-se que, na altura média, a diferença entre os dois grupos caiu de 7,0 centímetros, em 1910, para 5,7 centímetros em 2000 - uma melhoria significativa. No peso houve apenas uma ligeira atenuação, de 4,9 quilos de diferença para 4,6 quilos. No índice de massa corporal (IMC), os alunos do Colégio Militar têm valores médios apenas 1,9% superiores. Conclui-se ainda que, no último século, as alturas dos rapazes dos dois estabelecimentos aumentaram em média 13,6 centímetros e o peso 13,5 quilos - valores que espelham a melhoria das condições de vida no país, sobretudo a partir da década de 1960, explicam os autores. Ainda assim, os valores da desigualdade surpreenderam: "Sabemos que as crianças socialmente desfavorecidas tendem a ser mais baixas e menos robustas - o que reflecte condições de vida empobrecidas - mas conseguimos perceber qual era a diferença entre estes dois grupos no início do século, e qual é a diferença hoje", diz Hugo Cardoso. O investigador em antropologia biológica, e um dos autores do trabalho, tem utilizado a avaliação antropométrica como um indicador para o desenvolvimento da sociedade. "Os historiadores de economia analisam a evolução socioeconómica com indicadores relacionados com a moeda ou com o PIB, que na prática acabam por ser muito pouco específicos sobre a forma como sociedade funciona. Os dados sobre a estatura dão-nos uma imagem bastante real do impacto das disparidades", defende. A base tem sido o arquivo do Colégio Militar - por ter sido fundado em 1803 e ter dados sistematizados sobre a estatura dos alunos. Desta vez, uma colaboração com uma professora de Educação Física da Casa Pia de Lisboa permitiu uma análise comparativa entre a população de um colégio associado à elite e a de uma instituição fundada depois do terramoto de 1755 para apoiar jovens desfavorecidos, com princípios de protecção que se foram mantendo até hoje. O estudo confirmou uma "lacuna alarmante entre a saúde dos ricos e a dos pobres, que as recentes reformas sociais e económicas não conseguiram reduzir de forma significativa", escrevem os autores no final do artigo. Os indicadores são variados: descobriu-se, por exemplo, que entre 1910 e 2000, a altura média de uma criança com 13 anos no Colégio Militar aumentou 15,4%, de 1,46 metros para 1,61 metros. Na Casa Pia de Lisboa, nesta mesma idade, o aumento foi de 11,8%, de 1,39 metros para 1,55 metros. A taxa de crescimento virtual por década foi calculada em 1,4 cm/1,5 cm e 1,5 kg, embora as medidas dos alunos da Casa Pia sejam sempre menos robustas. "Houve uma diminuição da diferença entre estaturas, mas é tão pequena que se torna curioso perceber como é que durante 100 anos não houve oportunidade para as desigualdades sociais diminuírem", afirma o investigador. Duplo fardo Para Miguel Rego, nutricionista e colaborador da Direcção-Geral da Saúde, perante estes dados, é importante não esquecer a questão do "duplo fardo" das populações socialmente mais desfavorecidas. "Temos a criança com menos peso, com uma nutrição pior, mas cada vez mais surge o problema da obesidade, com vários estudos que apontam para uma prevalência mais elevada nestes grupos", sublinha. "Ao ver esta clara diferença entre grupos, que ainda que tenha vindo a diminuir mantém-se, devemos pensar claramente onde actuar primeiro", sugere. O especialista acredita que a estratégia para combater esta disparidade, resultado da nutrição e dos cuidados de saúde, passará pela reorganização em curso dos cuidados primários. "Temos de abandonar a visão hospitalocêntrica, e fazer valer estes serviços não só como um sítio onde se procura saúde quando se está doente, mas como um parceiro activo na comunidade, nas escolas e no trabalho para promover hábitos alimentares e uma população com mais acesso à informação e capacidade de a interpretar."
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