10 de dezembro de 2008

Urbanismo e corrupção: as mais-valias e o desenvolvimento urbano IV. Por José Carlos Guinote.

Mais-valias: agentes e comportamentos.

Um outro aspecto que interessa tentar compreender é o seguinte: quem são os agentes que intervêm neste processo e como se comportam? Os autores [16] que estudaram a questão das mudanças de uso, em particular do solo rústico para o urbano, identificam um conjunto de agentes que vão dos proprietários rurais, que já não são verdadeiros empresários agrícolas, aos promotores que adquirem os terrenos na perspectiva de uma futura utilização como solo urbano. Mas aquilo que é identificado como comum nestes agentes é o facto de todos eles calcularem o valor do solo rústico em função do valor do uso urbano, e de a posse do solo não visar servir de suporte a qualquer actividade agrícola ou florestal mas perseguir unicamente fins especulativos. A actuação destes agentes é fortemente influenciada pela actuação dos agentes catalisadores e dos agentes permissivos das mudanças de uso do solo. Quem são, pois, estes agentes catalisadores e permissivos? Os agentes catalisadores são sobretudo aqueles que mais lucram com a especulação imobiliária e a transformação dos terrenos rústicos em terrenos urbanizáveis. É o caso dos bancos, das grandes empresas imobiliárias, dos fundos de investimento, das seguradoras e de instituições dotadas de grande capacidade financeira. São aqueles que investem, ou apoiam o investimento, a baixo custo, em terrenos objecto de severas restrições à edificabilidade e que têm poder para condicionar as regras do urbanismo e a forma de actuação dos poderes públicos. A sua capacidade financeira e uma aguda consciência do valor das mais-valias em jogo permitem-lhes actuar a médio e longo prazo. Esta postura foi recentemente premiada na revisão da Lei da Tributação do Património, em 2003, que não alterou a forma de cálculo do valor patrimonial da propriedade rústica embora tenha promovido uma profunda reforma do sistema de avaliação da propriedade urbana.

Quanto aos agentes permissivos, eles são sobretudo as autarquias e os governos, em particular ministérios como o do Ambiente, da Economia ou da Agricultura mas também os já atrás referidos integrantes das Comissões das Reservas Agrícola e Ecológica. É no contexto da actuação dos agentes permissivos das mudanças de uso que são compreensíveis dois tipos de actuação diferentes mas, afinal, complementares:

1) Em primeiro lugar, a actuação dos autarcas abrangidos pelos chamados «investimentos estruturantes». Tomam a peito a sua função de agentes permissivos e clamam alto e bom som que o desenvolvimento, seja lá isso o que for, pode estar em causa se os processos não avançarem. Revisitem-se as declarações de dois autarcas um, eleito pela Coligação Democrática Unitária (CDU), no concelho de Benavente, com o célebre processo Portucale/Herdade da Vargem Fresca, e outro, eleito pelo Partido Socialista (PS), no concelho de Grândola com os processos Pinheirinho, Costa Terra e Sonae/Tróia, ou ainda, mais recentemente, com a desanexação de 744 hectares de Reverva Ecológica Nacional (REN) dos terrenos da Herdade da Comporta. Constatar-se-á a sintonia de argumentos e o efeito de redução a um menor denominador comum que as dinâmicas do imobiliário introduzem sobre os discursos e os projectos políticos, supostamente diferentes, existentes ao nível local. Este comportamento dos autarcas verifica-se apesar de o processo de urbanização ser claramente deficitário, sobretudo se pensarmos a médio e a longo prazo. Isto significa que estes processos de urbanização, tal como são geridos em Portugal, são em grande parte financiado com os impostos de todos os contribuintes. Contudo, o processo de urbanização permite, pontualmente, um conjunto de receitas que funcionam muitas vezes como balões de oxigénio para as debilitadas tesourarias municipais. Refiro-me sobretudo ao momento do pagamento das Taxas Municipais de Urbanização que, em função da dimensão das urbanizações, podem corresponder a receitas com indiscutível peso face às restantes receitas correntes mas que, face à captura pelos privados das mais-valias simples são uma pequeníssima parte dos valores em jogo. Claro que, face aos pesados encargos que a urbanização acarreta a longo prazo para os municípios, ela se transforma num ónus para as gerações futuras e para todos os cidadãos.

2) Em segundo lugar, a actuação dos ministérios, em particular do Ambiente e da Economia, que emitem declarações de interesse público para determinado tipo de operações, permitindo a ultrapassagem das regras do urbanismo. Sendo cada um de nós perfeitamente capaz de entender o interesse privado dessas operações, seria útil, em nome da transparência, uma divulgação pública das razões que fundamentam cada uma das declarações de utilidade pública. Tanto mais útil quanto parece ser este o governo [17] que promoveu a maior mudança de uso do solo rústico para urbano da história da democracia – e não manifesta intenção de abrandar o ritmo. Quais são os critérios para a sua atribuição? Será que foi ponderado o custo associado ao facto de uma parte significativa do território nacional, com um património natural notável, ser privatizado, ficando o seu usufruto condicionado à capacidade económica para adquirir determinados produtos imobiliários? Será que faz sentido alienar parte significativa do território, que é de todos, para benefício de alguns, entendendo esse património não como um património colectivo que temos o dever de transmitir às gerações futuras mas tão somente como um mero produto imobiliário ou como suporte de operações imobiliárias? Será que faz sentido relevar os ensinamentos do passado e tentar compreender as dinâmicas associadas à produção imobiliária, sobretudo na fase do desinvestimento e do abandono do território, como aconteceu na década de setenta na agora tão badalada Península de Tróia? Ou a propalada «qualidade» dos empreendimentos – de que os ministros do Ambiente e da Economia fazem tanta propaganda –, que, ao que parece, se mede pela exclusividade no acesso determinada pelos preços muito elevados a que são colocados no mercado os diferentes produtos imobiliários, é suficiente para nos tranquilizar a todos? Qualidade a que apenas alguns podem aceder, como acontece com o empreendimento de Tróia cujos apartamentos foram vendidos, segundo notícias divulgadas, pelo preço «acessível» de 800 000 euros. Sendo os preços dos produtos imobiliários resultado de um conjunto de parcelas conhecidas, qual é o peso do preço do solo neste preço final? Será que o carácter sustentável, como fica bem afirmar-se seja a propósito de que empreendimento imobiliário for, de que agora se fala, é o garante dos «amanhãs que cantam» que nos anunciam?
Notas:
[16] Ver Paulo Correia, Políticas de Solos no Planeamento Municipal, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002.

[17] Recentemente, numa entrevista ao Público (suplemento Imobiliário), de 27 de Março de 2008, o secretário de Estado do Turismo, Bernardo Trindade, declarou a propósito do Plano Estratégico Nacional de Turismo que «não poderíamos continuar a encapotar projectos imobiliários sob a designação de empreendimentos turísticos». Trata-se de uma opção para o futuro que caracteriza com um rigor insuperável a prática do presente e do passado recentes. É sempre bom serem os próprios a fazer este tipo de revelações, embora nós já soubéssemos, há muito tempo, que o turismo tem, infelizmente, servido de capa ao imobiliário puro e duro.

Sem comentários: