7 de dezembro de 2008

Urbanismo e corrupção: as mais-valias e o desenvolvimento urbano II. Por José Carlos Guinote.

Diferentes posicionamentos dos Estados face às mais-valias.
A política de solos tem sido, na generalidade dos países, um palco propício ao debate ideológico. Quer do ponto de vista do direito, quer do ponto de vista urbanístico, a discussão tem-se centrado muito na questão do papel e do grau de intervenção do Estado no domínio da produção dos solos urbanos. Em Portugal essa discussão, muito incipiente e durante anos inexistente, ficou sempre cativa de um certo radicalismo entre os que defendem o livre funcionamento do mercado, com a propriedade privada dos solos, e os que defendem a nacionalização ou municipalização dos solos. No entanto, face às diferentes experiências experimentadas em diversos países, que sentido faz, hoje, centrar o debate sobre as políticas de solos, o funcionamento dos mercados imobiliários e o desenvolvimento urbano na questão da propriedade pública, ou não, do solo e que consequências têm as políticas de posse pública ou privada para a formação do preço dos diferentes produtos imobiliários e para o ordenamento do território? A questão, a meu ver, não se coloca nesta pretensa dicotomia. Os diferentes sistemas de controlo do desenvolvimento urbano envolvendo ou não a posse pública do solo conduzem a resultados muito diferentes entre si, mesmo se os países adoptam modelos cuja arquitectura é semelhante. Uma das questões prévias que importa esclarecer é o entendimento que se faz do conceito do direito de propriedade e em particular a distinção que se estabelece, ou não, entre o direito de propriedade, o jus aedificandi e o direito de urbanizar. Em Portugal existe já doutrina do Tribunal Constitucional [6] em que se afirma que «se não se pode fundamentar o jus aedificandi directamente na garantia constitucional da propriedade privada, a conclusão que se deve tirar é a de que os pressupostos de existência e as condições de exercício daquele direito têm de ser encontrados no ordenamento jurídico urbanístico e estão dependentes do seu sistema de atribuição». Apesar de até 1965 o direito de urbanizar ter estado vedado aos particulares, a verdade é que desde então esse direito foi-lhes reconhecido passando o processo de desenvolvimento urbano a ser determinado pelas dinâmicas e pelos interesses dos promotores privados. Está ainda por fazer na nossa sociedade uma distinção entre o direito a edificar e o direito a urbanizar, clarificação fundamental para definir a forma como a Administração se relaciona com o processo de produção de solo urbano e com a geração de mais-valias simples. Sem a fazermos não podemos encontrar as respostas para grande parte das disfuncionalidades que caracterizam o nosso ordenamento do território.

Existem basicamente duas posições quanto à forma como a Administração se relaciona com as mais-valias: uma é a opção pela sua tributação e a outra a opção pela sua captura ou socialização. Em alguns países têm ocorrido variações ao longo dos anos, com alterações significativas do conteúdo das políticas fundiárias adoptadas, muito associadas às mudanças políticas internamente verificadas, sendo o caso da França talvez o mais relevante. Noutros países, independentemente das alterações políticas, os grandes eixos da política fundiária têm permanecido quase imutáveis, como acontece sobretudo na Suécia e na Holanda.
Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado adquiriu, na generalidade dos países que participaram no conflito, um papel central no planeamento urbanístico, na expropriação dos terrenos necessários à concretização dos planos e dos seus objectivos, na promoção da urbanização e no financiamento da construção de novas habitações. Existia, então, um grave problema de destruição de vastas zonas de importantes cidades, com a consequente falta de habitação, a que urgia dar resposta. Em regra adoptaram-se duas vias de intervenção: uma via directa, que passava sobretudo por tornar pública a posse dos solos, e uma via fiscal. A via directa recorria à posse pública dos solos como forma de garantir os seguintes aspectos considerados essenciais: o controlo do desenvolvimento urbano pela comunidade; o controlo da especulação fundiária e imobiliária; a retenção das mais-valias da urbanização. Esta via, de produção fundiária a partir da acção do Estado, tinha a sua eficácia salvaguardada pela vontade política, o que possibilitou a criação de mecanismos jurídicos e financeiros, bem como de estruturas de intervenção no terreno. Entre os mecanismos jurídicos assumiram particular relevo os Códigos de Expropriações e o Direito de Preferência na transmissão da propriedade fundiária, enquanto que os meios financeiros vinham directamente do Orçamento Geral do Estado. Quanto às estruturas de intervenção no terreno, um dos casos de maior sucesso foram as Agências Fundiárias da Região Parisiense, cuja intervenção foi decisiva para a concretização da política das Cidades Novas, com a aquisição do solo a fazer-se a um preço médio de 3 euros por metro quadrado, tendo estas agências sido classificadas como «belas máquinas de recuperação das mais-valias da urbanização em proveito da colectividade!» [7] Mais tarde a França mudou de política com a adopção de políticas liberais caracterizadas pela desregulamentação e pelo abandono das políticas intervencionistas de produção fundiária. No entanto o objectivo continuava a ser o mesmo: criar condições para reforçar a disponibilização dos solos necessários para a construção das habitações. A ideia forte era a de que numa situação de procura constante o aumento da oferta faria baixar os preços. Este conjunto de políticas no caso francês prolongou-se com alguns matizes até ao início do ano de 1986, que corresponde ao momento que diversos autores identificam com o início do crescimento da bolha imobiliária em França. O aparecimento da bolha do imobiliário, com os preços a duplicarem em poucos anos e com o incumprimento das famílias a disparar, foi a prova cabal de que as políticas liberalizantes adoptadas se tinham revelado equívocas e contraproducentes. Os defensores do postulado «desregulamentação – aumento da oferta – baixa do preço» foram confrontados com o facto, não previsto, de que a oferta real de solos não aumentou, pelo que o efeito benéfico sobre o preço não se verificou, antes pelo contrário. Faltou-lhes distinguir entre oferta potencial e oferta real.

Entre os países que optaram por reter as mais-valias e que mantêm a fidelidade a esse modelo salienta-se a Holanda, que procede à municipalização total da produção do solo urbano, e a Suécia, que socializa as mais-valias através da declaração da utilidade pública do solo. No caso holandês a municipalização traduz-se na possibilidade de o município poder expropriar todo o solo necessário ao desenvolvimento urbano após a aprovação de um plano urbanístico, sendo o valor pago a título de indemnização o valor do uso existente. A Holanda é consensualmente reconhecido como o único país em que o valor de mercado dos terrenos rústicos não contém qualquer parcela especulativa, mesmo se localizados junto ao perímetro urbano de uma cidade.
Esta política de solos e esta forma de lidar com as mais-valias possibilita depois a concretização de uma política de habitação inclusiva capaz de responder às necessidades de todos os grupos e capaz de evitar a segregação espacial das populações segundo os seus níveis de rendimento. Um dos principais objectivos do planeamento na Holanda é responder às necessidades sociais em termos de habitação e essa é uma das razões pela qual uma das mais importantes variáveis políticas que afectam a política fundiária no caso holandês é a combinação de usos adoptados na área do Plano [8]. Outra situação muito interessante é a da Alemanha, que procede à socialização das mais-valias mas sem envolver a posse pública do solo. No caso alemão, a relação entre planeamento urbanístico, políticas fundiárias e preço do imobiliário tem um carácter muito específico sobretudo por duas razões distintas [9]: o papel motor do município nas decisões de início do processo de urbanização e a cobrança imediata aos proprietários dos terrenos duma parte significativa dos custos de urbanização. Logo que um município aprova um B-Plan – com algumas semelhanças com os nossos Planos de Pormenor mas com diferenças significativas –, o montante a suportar pelos proprietários dos terrenos abrangidos pode atingir os 90% do custo total de construção das infra-estruturas e dos equipamentos previstos para a área do Plano. A factura que é imediatamente enviada aos proprietários pode variar entre os 15 euros por metro quadrado e os 23 euros por metro quadrado. Naturalmente, quem suporta estes encargos não tem qualquer vantagem em manter uma atitude expectante, sendo «estimulado» a colocar os seus terrenos no mercado. Existe, no entanto, uma porta de saída para o proprietário insolvente (ou que não deseja estar associado ao desenvolvimento): o direito de ceder a propriedade está-lhe aberto, e o município é obrigado a comprar-lhe o seu terreno, mas a um preço que não integra o seu valor de desenvolvimento. Da mesma forma, no caso de existir oposição do proprietário à concretização do Plano o município procede à expropriação. O Código das Expropriações valoriza o terreno a expropriar pelo valor do uso existente antes da elaboração do Plano, cortando cerce todas as tentativas especulativas. Esta situação é idêntica à verificada na Holanda, embora neste país só uma pequena percentagem dos terrenos venha à posse do município pelo recurso à expropriação. Mas noutros países como Singapura e Hong Kong – quer como parte da Coroa britânica até 1997, quer depois como Região Administrativa Especial da República Popular da China – a aquisição dos terrenos necessários ao desenvolvimento urbano faz-se sempre pelo preço associado ao uso existente [10].
De entre aqueles que seguiram a via da tributação refere-se, normalmente, a Dinamarca, que cobra o imposto de mais-valias no caso de solos rústicos com uso urbano aprovado, com a taxa a variar entre 40% e 60% das mais-valias geradas. Refira-se a propósito da situação na Dinamarca que esta tributação pressupõe a existência de um conjunto de valores oficialmente fixados para o solo rústico e o solo urbanizável, sobre cuja diferença é aplicada a taxa. De quatro em quatro anos, todos os terrenos são reavaliados e os resultados são publicados em cartas oficiais com o valor dos terrenos. Inicialmente o Estado procedia à cobrança do imposto das mais-valias logo após a aprovação do Plano, existindo mesmo uma linha de crédito público para os proprietários que não tivessem liquidez suficiente para proceder ao seu pagamento. Posteriormente, a cobrança passou a ser efectuada apenas no momento da primeira transmissão da propriedade posterior à aprovação do Plano. Tal como o seu sistema de planeamento, o sistema dinamarquês de avaliação é referido como um dos mais, senão o mais, sofisticado no mundo. A eficácia deste sistema de tributação das mais-valias passa pela existência de um conjunto de condições de que saliento as seguintes: transparência do mercado, coordenação entre a administração fiscal e a administração urbanística, e estabilidade das regras do urbanismo. Mas existem muitos outros países que adoptam esta via com maior ou menor sucesso, sendo de salientar um conjunto de cidades norte-americanas no estado da Pensilvânia, com destaque para Pittsburgh. A adopção de qualquer uma destas posturas por parte da Administração releva da importância que é dada à análise e à regulação do funcionamento do mercado imobiliário, com o rigoroso controlo da criação e distribuição das mais-valias geradas pelos Planos. Releva, igualmente, da existência de uma política de solos que visa assegurar a disponibilização de terrenos para os diversos usos, protegendo os usos agrícola e florestal, incapazes de competir com o poder aquisitivo do uso urbano já que no âmbito da exploração normal associada a estas actividades não é possível amortizar o valor fundiário que o uso urbano suporta. Mas que, dentro do uso urbano, tem como objectivo dar resposta às necessidades de habitação de todos os grupos sociais e não apenas dos que têm poder aquisitivo mais elevado. Investigações feitas em França e Espanha no final de década de noventa, envolvendo centenas de programas imobiliários [11], evidenciaram a alteração do peso relativo dos factores «preço do solo» e «preço da construção» na composição do preço final do imobiliário. O peso da construção, a única componente do preço do imobiliário susceptível de ser obtida num mercado concorrencial, manteve-se estável entre as décadas de setenta e noventa, vendo o seu peso relativo na estrutura do preço do imobiliário descer significativamente, ao passar de valores na ordem dos 40% para valores abaixo dos 20%, sobretudo nos segmentos mais elevados. O preço do solo fez o percurso inverso, passando de um peso inferior aos 30% para um valor da ordem dos 60% do preço final, podendo nalguns segmentos ultrapassar este valor. Como se percebe, esta componente do preço não se forma numa lógica de mercado mas sim numa lógica de planeamento. São as decisões, ou as omissões, da Administração, e não a concorrência entre os proprietários dos solos, que determinam a formação dos preços. Sem a segmentação do mercado de solos e sem o controlo das mais-valias pela Administração não há forma de impedir a pressão urbana sobre os terrenos rústicos e mesmo sobre os solos integrantes das zonas de parques e reservas. Ora, esta é uma condição sine qua non para garantir um adequado ordenamento do território.
Notas:
[6] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 341/86 (DR. II Série, nº 65, de 19-03-1987).

[7] Vincent Renard, «L’économie du logement: le préalable foncier», in Marion Segaud, Catherine Bonvalet e Jacques Brun, Logement et Habitat – L’état des savoirs, ADEF, Paris, 1998, pp. 201-209.

[8] Cf. Barrie Needham, «A Theory of Land Prices When Land is Supplies Publicly. The case of Netherlands», Urban Studies, vol. 29, n.º 5, Junho de 1992, pp. 669 – 686.

[9] Vincent Renard, «Le Financement de l’aménagement – Réflexions à partir de quelques exemples étrangers: Allemagne, Pays-Bas, Royaume-Uni, Etats-Unis», DRAST, n.º 53, 2001. Do mesmo autor, sobre este tema, ver: «L’Économie du logement: le préalable foncier», Logement et habitat : L’état des savoirs, ADEF Paris, 2005; «Développement urbain, financement des équipements et récupération des plus-values. Faut-il faire payer le permis de construire», Revue d’Economie Régionale et Urbaine, n.º 3; «Bulles spéculatives, prix immobiliers, prix fonciers», L’Articulation du foncier et de l’immobilier, ADEF, Paris, 2005.

[10] Cf. Paul Balchin, David Isaac e Jean Chen, Urban Economics – A Global Perspective, Macmillan Palgrave, 2000 (cap. 9 – «Urban Planning, Land Policy and the Market»), pp. 387-415.

[11] Cf. Paul Massé, «Niveaux des charges fonciéres et structure des prix de vente», in Jean-Jacques Granelle e Thierry Vilmi (dir.), L’Articulation du foncier et de l’imobilier, ADEF, Paris, 1993.

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