5 de dezembro de 2008

Os principais objectivos da política externa dos Estados Unidos da América XII. Por Noam Chomsky.

A invasão do Panamá.

O Panamá tem sido tradicionalmente controlado pela sua minúscula elite europeia, menos de 10% da população. Isso mudou em 1968, quando Omar Torrijos, um general populista, liderou um golpe que permitiu aos negros e aos mestiços pobres partilharem de uma fatia mínima do poder, sob a sua ditadura militar. Em 1981, Torrijos foi morto num acidente aéreo. Até 1983, o governante efectivo do Panamá foi Manuel Noriega, um criminoso que tinha sido aliado de Torrijos e da CIA. O governo norte-americano já sabia que Noriega estava envolvido com o tráfico de drogas, desde pelo menos 1972, quando o governo de Nixon considerou a possibilidade de eliminá-lo. Contudo, ele continuou na folha de pagamentos da CIA. Em 1983, uma comissão do Senado norte-americano concluiu que o Panamá se tinha tornado um grande centro de lavagem de dinheiro e de tráfico de drogas. O governo norte-americano, mesmo assim, continuou a prestigiar os serviços de Noriega. Em maio de 1986, o director do Órgão de Repressão às Drogas elogiou Noriega pela sua "vigorosa política contra o tráfico de drogas". Um ano mais tarde, esse director deu "as boas-vindas à nossa estreita associação" com Noriega, enquanto o procurador-geral Edwin Meese paralisou uma investigação do Departamento de Justiça dos EUA sobre as atividades criminosas de Noriega. Em agosto de 1987, uma resolução do Senado condenando Noriega foi contestada por Elliott Abrams, uma autoridade do Departamento de Estado encarregado da política norte-americana na América Central e no Panamá. Ainda assim, quando Noriega foi finalmente processado, em Miami em 1988, todas as denúncias, excepto uma, eram referentes a atividades praticadas antes de 1984, quando ele era o nosso "menino", ajudando os Estados Unidos na guerra contra a Nicarágua, defraudando eleições com a aprovação dos EUA e geralmente servindo de modo satisfatório os interesses norte-americanos. Isso nada teve a ver com a repentina descoberta de que ele foi gangster e traficante de drogas - o que sempre se soube. Tudo é muito previsível, como um estudo atrás do outro mostra. Um tirano brutal cruza facilmente a linha, de amigo admirável para "vilão" e "escória" quando comete o crime da independência.

Um erro comum é o de ir além do roubo aos pobres - o que até é bom - e começar a interferir nos interesses dos privilegiados, provocando a oposição dos líderes empresariais. Em meados de 1980, Noriega já era considerado culpado por esses crimes. E, entre outras coisas, ele parecia não estar disposto a ajudar os EUA na guerra dos contras. A sua independência ameaçava também os nossos interesses no Panamá. A 1 de janeiro de 1990, a maior parte da administração do Canal estava a passar para o controle do Panamá e, no ano 2000, o Canal passa completamente para aqule país. Tínhamos de nos assegurar, então, que o Panamá estaria nas mãos de pessoas que pudéssemos controlar antes daquela data. Como não podíamos continuar a confiar em Noriega para cumprir as nossas ordens, ele tinha de desaparecer. Washington impôs sanções económicas que virtualmente destruíram a economia, deixando a carga principal cair sobre a maioria pobre e não branca. Essa população também passou a odiar Noriega, porque ele era responsável pela guerra económica (que era ilegal, se alguém quer saber) que estava a levar os seus filhos a morrerem de fome. Em seguida, tentou-se um golpe militar, mas falhou. Então, em dezembro de 1989, os EUA comemoraram a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria invadindo o Panamá de modo fulminante, matando centenas ou talvez milhares de civis (ninguém sabe ao certo, e poucos ao norte do Rio Grande têm interesse suficiente em saber). Isso restaurou o poder da elite branca e rica, que tinha sido destituída pelo golpe de Torrijos, bem a tempo de assegurar um governo dócil na mudança administrativa do Canal, em 1 de janeiro de 1990 (como foi observado pela imprensa de direita europeia). Durante todo esse processo, a imprensa norte-americana foi comandada por Washington, seleccionando vilões segundo as necessidades do momento. Acções anteriormente perdoadas tornaram-se crimes. Por exemplo, em 1984, a eleição presidencial no Panamá foi vencida por Arnulfo Arias. A eleição foi roubada por Noriega com violência e fraude consideráveis. Mas Noriega ainda não se tinha tornado desobediente. Ele era o nosso homem no Panamá, e o partido de Arias foi julgado por ter perigosos elementos do "ultranacionalismo". O governo Reagan aplaudiu, portanto, a violência e a fraude, e mandou para lá o secretário de Estado, George Shultz, para legitimar a eleição roubada e elogiar a versão da "democracia" de Noriega como um modelo para os errantes sandinistas. A aliança Washington-comunicação social e os principais jornais abstiveram-se de criticar a eleição fraudulenta no Panamá, mas consideraram como totalmente sem valor as eleições sandinistas daquele mesmo ano - que foram muito mais livres e honestas - porque não puderam ser controladas. Em maio de 1989, Noriega rouba novamente uma eleição, dessa vez de um representante da oposição empresarial, Guillermo Endara. Noriega usou menos violência do que em 1984. Mas o governo Reagan preconizava estar contra Noriega. Seguindo o roteiro já previsível, a imprensa expressou a sua indignação ante o seu fracasso em seguir o nosso elevado padrão democrático. A imprensa começou também a denunciar veementemente as violações dos direitos humanos, que anteriormente não haviam merecido a mínima atenção. Na época da invasão do Panamá, em Dezembro de 1989, a imprensa já havia satanizado Noriega, transformando-o num monstro pior que Átila, o rei dos hunos (foi basicamente a repetição da satanização de Kadafi, da Líbia). Ted Koppel jurava que "Noriega pertencia àquela confraria especial de vilões internacionais, homens como Kadafi, Idi Amin e o Aiatola Khomeini, que os americanos amam odiar". Dan Rather colocou-o "no topo da lista de ladrões, das drogas e da escória do mundo". Na verdade, Noriega foi um bandido de muito menor calibre - exactamente como era quando trabalhava para a CIA.

Em 1988, por exemplo, o "Americas Watch" publicou uma reportagem sobre os direitos humanos no Panamá, mostrando um quadro desolador. Mas como os relatórios e as informações mostram claramente, o registo de violações de Noriega aos direitos humanos não era nada diferente do de outros clientes dos Estados Unidos na região, nem era pior do que no período em que Noriega ainda era um dos nossos favoritos e seguia as nossas ordens. Tome-se o caso das Honduras, por exemplo. Embora não seja um governo terrorista e assassino como os de El Salvador e da Guatemala, os abusos contra os direitos humanos, lá, eram provavelmente piores do que no Panamá. De facto, havia um batalhão treinado pela CIA, nas Honduras, que por si só já havia cometido mais atrocidades do que Noriega. Ou então considerem-se os ditadores apoiados pelos Estados Unidos, como Trujillo, na República Dominicana, Somoza, na Nicarágua, Marcos, nas Filipinas, Duvalier, no Haiti, e uma série de outros gangsters da América Central, durante a década de 1980. Todos eram mais brutais que Noriega, mas os Estados Unidos apoiaram-nos incontestavelmente por décadas, mesmo sabendo das terríveis atrocidades cometidas - enquanto os lucros saíam dos seus países e desembocavam nos EUA. O governo de George Bush continuou a exaltar Mobutu, Ceausescu e Sadam Hussein, entre outros, todos criminosos piores que Noriega. Suharto, da Indonésia, indiscutivelmente o pior assassino de todos eles, permanecia como "moderado" na comunicação social manietada de Washington. De facto, no exacto momento em que o Panamá foi invadido, devido ao ultraje na violação dos direitos humanos feito por Noriega, o governo Bush anunciou a venda de alta tecnologia para a China, justificando que 300 milhões de dólares, em negócios para as empresas norte-americanas, estavam em jogo, e assim os contactos foram secretamente retomados, poucas semanas depois do massacre na Praça Tiananmen. No mesmo dia em que o Panamá foi invadido, a Casa Branca anunciou também planos (e implementou-os logo em seguida) de suspender a proibição de empréstimo ao Iraque. O Departamento de Estado explicou com seriedade que a medida objetivava alcançar "o aumento de metas de exportação americanas e colocar-nos em melhor posição para tratar com o Iraque sobre o relatório dos direitos humanos...” O Departamento de Estado continuou com essa farsa enquanto Bush repelia a oposição democrática iraquiana (banqueiros, profissionais, etc.) e bloqueava esforços no Congresso para condenar os crimes atrozes do seu velho amigo Sadam Hussein. Comparado com os amigos de Bush em Bagdad e Pequim, Noriega parecia a Madre Teresa de Calcutá. Após a invasão, Bush anunciou um bilhão de dólares em ajuda ao Panamá, dos quais 400 milhões consistiam em incentivos às empresas norte-americanas para exportar produtos ao Panamá, 150 milhões foram para pagar empréstimos aos bancos e 65 milhões foram para outros empréstimos ao sector privado e garantias aos investidores americanos. Em outras palavras, cerca de metade da ajuda foi um presente do contribuinte americano às empresas americanas. Os EUA colocaram os banqueiros de volta no poder depois da invasão. O envolvimento de Noriega com o tráfico de drogas era trivial se comparado com o deles. O tráfico de drogas, lá, foi sempre conduzido pelos bancos - e como o sistema bancário praticamente não é regulamentado -, isso resulta numa saída natural para o dinheiro do crime. Essa tem sido a base altamente artificial da economia do Panamá e permanece assim - possivelmente em grau mais elevado - após a invasão. As Forças Armadas de Defesa do Panamá foram também reconstruídas com os mesmos oficiais. Em geral, tudo está praticamente na mesma, só que agora os servidores encarregados são mais confiáveis. O mesmo se passa com Granada, que se tornou num grande centro de lavagem de dinheiro das drogas, desde a invasão americana. A Nicarágua também se tornou um importante canal de ligação para o mercado americano de drogas, depois da vitória de Washington na eleição de 1990. A norma é padronizada - assim como a omissão em percebê-la...

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