28 de outubro de 2008

Mais um triste exemplo.

O projecto "Nova Alcântara" é mais um exemplo da incúria dos nossos governantes no aumento da macrocefalia territorial, económica e social da região de Lisboa, ainda por cima com contornos de lesar gravemente o interesse público em favor do interesse privado. E que interesse privado!
Num mundo normal (nem sequer num mundo perfeito), numa cidade como Lisboa - que tem o luxo de ter 14 km de estuário de rio, que, além do mais, representam o seu maior património histórico de referência - nada seria consentido fazer que pudesse comprometer aquilo que é o domínio público mais importante da cidade e o seu traço marcante decisivo. O rio seria de Lisboa e de ninguém mais, porque Lisboa sem o rio será apenas uma paisagem em degradação acelerada. Mas, nós vivemos numa democracia em que os interesses privados passam tranquilamente à frente do interesse público, com sucessivos pretextos que, olhados de perto, não passam de um embuste. Este caso, aliás, vem demonstrar que, pior ainda do que um mercado desregulado por falta de intervenção do Estado - que subitamente tanto preocupa José Sócrates - é um mercado regulado pelo favor político do Estado, como sucede entre nós, de forma cada vez mais chocante.
Com a maior surpresa e sem qualquer discussão pública, em Abril de 2008, o País tomou conhecimento, pela comunicação social, da assinatura de um acordo entre as diversas entidades para a realização do empreendimento designado por Nova Alcântara/Nó Ferroviário/Terminal de Contentores. Este empreendimento prevê, em síntese: a ligação ferroviária desnivelada da linha de Cascais com a linha de Cintura, a ligação ferroviária desnivelada ao Terminal de Contentores e a ampliação deste terminal para o triplo da capacidade actual. Em suma, erguer um muro de contentores na zona de Alcântara, podendo ocupar até 1,5 km de frente de rio, com uma altura de 15 metros - o equivalente a um prédio de cinco andares. Além de ser injustificável,
técnica e economicamente e de ir causar enorme impacte ambiental negativo, este projecto constitui exemplo flagrante de interesses privados prevalecentes escandalosamente sobre os do País. E há outro dano, ainda: durante seis anos, o governo vai lançar mãos à obra para enterrar a via férrea existente, adaptando-a à necessidade de escoar um milhão de contentores a partir do centro da cidade. Num ponto crucial de entrada e saída de Lisboa, vamos ter um pandemónio instalado durante vários anos, para conseguir fornecer as acessibilidades tornadas necessárias pela localização errada do terminal de contentores. A zona da Trafaria e Cova do Vapor, na expansão que o porto teria que efectuar no curto/médio prazo é, sem qualquer dúvida, o melhor local de todo o estuário do Tejo para a construção de instalações portuárias modernas. Além disso, a realização dessa obra constituiria uma oportunidade excelente para reabilitar e estabilizar, com carácter permanente, a praia da Caparica. Além dos elevadíssimos custos que a ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara e a construção das respectivas acessibilidades irão ter, teremos que continuar, por muitos mais anos, a gastar fortunas a colocar enrocamentos nos esporões da praia da Caparica, a alimentar com areias essa praia, a dragar essas mesmas areias que continuamente vão obstruindo o canal de navegação de acesso marítimo ao porto e a executar dispendiosas obras de protecção na margem direita do rio que, sem o banco do Bugio, fica exposta aos temporais do Sudoeste.
Nessas obras de Alcântara, vai o governo gastar para cima de 200 milhões de euros, através da C.P. e da Refer, de forma a tornar viável um negócio privado que é, além do mais, totalmente inútil. Lisboa tem capacidade subaproveitada para receber contentores - mas não ali e justamente na zona oriental, para onde querem agora mandar os navios de passageiros. Aliás, em Alcântara, vai ser ainda necessário dragar o rio, porque o seu fundo não assegura o calado dos navios que para ali se querem levar para despejar contentores. E, quando tanto se fala em descentralização, é notável pensar que o Estado quer investir 200 milhões para trazer contentores para o centro da capital, quando ali ao lado, em Setúbal, existe um porto perfeito para isso e cuja capacidade não aproveitada é de 95%! E isto para já não falar em Sines... Por fim, como se tudo o que antecede não bastasse, está actualmente a ser gasta outra fortuna na construção de um novo terminal de cruzeiros em Santa Apolónia, quando a cidade tem já o de Alcântara que, além de dispor dessa tradição e estar situado em local muito privilegiado para o efeito, tem todas as condições para, com custos relativamente reduzidos, ficar devidamente apetrechado com os requisitos exigidos num moderno terminal desta natureza.

Tão absurdo projecto só pode ser fruto de uma imbecilidade inimaginável ou... de uma grande, grandessíssima, negociata. O negócio que o governo acaba de celebrar para Alcântara com a Liscont/Mota Engil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 188/2008, de 23 de Setembro, tem de ser investigado - pela Assembleia da República, pelo Tribunal de Contas, pela Procuradoria-Geral da República. É preciso que fique claro do que estamos a falar: se de um acto administrativo de uma estupidez absoluta ou de mais um escândalo de promiscuidade político-empresarial. Como é possível um País com tantas carências, delapidar tão impunemente o valioso património de que ainda dispõe, desperdiçar recursos em obras injustificáveis, mesmo com base no mais elementar bom senso, e como é que os seus principais responsáveis deixam que, tão descaradamente, os interesses privados prevaleçam sobre o interesse público?
Extractos de artigo de Miguel Sousa Tavares publicado no “Expresso” de 20 de Outubro de 2008, cruzados com extractos de artigo do Engenheiro José Manuel Cerejeira* publicado no “O Diabo” de 30 de Setembro de 2008.

*Engenheiro Civil com mais de 35 anos de experiência em projecto de portos, estaleiros navais e obras marítimas no país e no estrangeiro.
Podem assinar a petição aqui.

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