18 de fevereiro de 2010

Será que o João Chagas conhecia o cabrão?

“As Minhas Razões” JOÃO CHAGAS (1863-1925)

Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos perseguem a imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase sempre por se declarar vencidos.

João Pinheiro Chagas, emérito jornalista, escritor, diplomata e político destacado da primeira República, fundou e dirigiu vários jornais, colaborou em diversos periódicos e deixou publicada vasta obra de ensaios, memórias, etc. Do seu livro “As Minhas Razões” publicado em 1906 extraímos os textos seguintes, significativos e em certa medida oportunos, cujos títulos são da nossa autoria, para que os leitores meditem nestas palavras escritas, já lá vão noventa e oito anos. O juízo a cada um pertence.

“PERSEGUIÇÃO À IMPRENSA”

O que se pensará daqui a cem, daqui a duzentos anos da apreensão de um jornal?
Será este facto reputado odioso, ou será simplesmente reputado grotesco?
Eu suponho que será reputado um facto grotesco e que os pósteros apanharão ainda, à nossa custa, bem boas barrigadas de riso.
Com efeito, qual é a ideia da apreensão? É a ideia de impedir que uma verdade circule, e há porventura nada mais grotesco que desatar a correr atrás de uma folha de papel, porque essa folha de papel contém – uma verdade.
Alto ! contestam, porém os poderes públicos. – Essa folha de papel não contém a verdade: contém uma mentira, e há porventura nada mais burlesco ainda do que desatar a correr atrás de uma mentira?
Verdade, mentira é o pensamento e há nada mais risível do que querer apreender o pensamento?
Eu vi algumas vezes apreender jornais nas ruas de Lisboa e nunca pude deixar de rir a bandeiras despregadas, mesmo quando esses jornais eram meus, porque asseguro-lhes que não há espectáculo mais divertido.
Que faz esse homem de sabre em punho, a correr atrás de um rapazito que foge? Corre atrás do rapaz? Não. Corre atrás de uma verdade que ele leva nas mãos, embrulhada nalgumas folhas de papel.
O homem acerca-se do rapaz, arranca-lhe das mãos as folhas de papel e mete-as no bolso com um sorriso de satisfação.
O que significa o seu sorriso? – Significa que conseguiu esconder no seu bolso uma verdade.
Escondeu-a.
Na realidade denunciou-a.
Enquanto essa verdade circulava tranquilamente nas mãos do rapaz, nas mãos do homem ainda corre mais. Agora não corre: voa.
Toda a gente ri. Ri-se de tudo o que é pueril e vão. Ri-se da omnipotência do rapaz. Ri-se da impotência do homem.
Rapaz! Não fujas. Não te dês ao trabalho de fugir. Deixa-te agarrar por esse homem furibundo que te persegue. Arranca-te das mãos os teus jornais? Deixa-os arrancar. Agora já não és tu já que o apregoas. – É ele. Estão escondidos no seu bolso e irradiam. Nas tuas mãos eram apenas jornais. Agora são um clarão. Nada se perdeu, nada, a não ser as poucas moedas de dez réis de que ele te privou. Mas tranquiliza-te! – Serás indemnizado amanhã do prejuízo que sofreste hoje. A verdade dá sempre dividendo e, em suma fizeste-nos passar um bom bocado.
Está absolutamente demonstrado que só os poderes enfraquecidos perseguem a imprensa e, por outro lado, está igualmente demonstrado que nem por isso se tornam mais robustos e que, ao contrário, acabam quase sempre por se declarar vencidos. Só os poderes enfraquecidos temem a imprensa porque a imprensa não é para temer. Só a verdade é temível, disse o velho Thiers que um tão belo papel representou no acto de protesto contra as Ordenanças de Julho.
Os juízos da imprensa só são eficazes quando são justos, porque apesar de tudo quando se pensa da influência da imprensa sobre a opinião, nem por isso é menos certo que são afinal os votos desta que ela acaba por formular. Não é geralmente o jornal que faz a opinião: é a opinião que faz o jornal, e o jornal é quase sempre o último a exprimi-la.
Supõem por acaso que os interesses dos jornais não são os interesses da opinião? São os mesmos. Quando a imprensa inteira se levanta não faz, em geral, senão ceder às suas cominações. – Quando não partilha das paixões que a inflamam, obedece ao seu impulso despótico. Perseguindo a imprensa, os poderes parecem receosos de que, ao contrário, seja a imprensa que semeie essas paixões. Erro ! Não há paixões. Há verdade, há justiça. Se não formos verdadeiros, se não formos justos, por muito que falemos, por muito que gritemos, mesmo pela voz clamorosa da imprensa, ninguém nos escutará.
Quer-se um exemplo?
Aqui está Rochefort. Rochefort foi ouvido enquanto fez obra de verdade e de justiça. O seu renome não tem mesmo outra origem. Desde, porém, que se deu a combater contra toda a verdade e toda a justiça, a opinião, que ele mais de uma vez levou consigo, voltou-lhe completamente as costas. Rochefort combate a República Francesa com a derradeira violência e os seus chefes com os últimos ultrajes. Loubet nunca foi na sua pena senão «um canalha», e Falliéres outro, o que não impede que a República, Loubet, Falliéres se ressintam tanto dos seus ataques como o sol de pedradas. Ao contrário, crescem na consideração alheia, são respeitados, são amados, são festejados. Contudo Rochefort é a imprensa, e pensam por acaso que a República e os governos republicanos perseguem a imprensa na pessoa de Rochefort? Bem sabem que não. Rochefort diz tudo quanto quer e deste direito usa largamente.
E porque não se persegue Rochefort? – Porque Rochefort, embora sendo a imprensa, não é um perigo nem para as instituições, nem para os chefes republicanos, visto que não é essa temível verdade de que fala Thiers, e, segundo a frase de Thiers, a falsidade é impotente e nunca houve poder que por ela sofresse.
O facto é este: Só receiam a imprensa os poderes impopulares. O seu erro consiste em imaginarem que deixam de o ser pelo facto de a perseguir.

“IMPRENSA MINISTERIAL”

Não sei se, como em Portugal, em toda a parte há uma imprensa ministerial. A mim afigura-se-me a imprensa ministerial a coisa mais frívola do mundo.
O que faz a força da imprensa é a ideia que se lhe associa, de imparcialidade. Bem sei que não é assim. A imprensa não é imparcial e é mesmo tão parcial que, por via de regra, serve os interesses dos princípios, quando não os das facções e os das facções quando não os dos homens. Uma imprensa imparcial, de resto, seria absolutamente vazia de sentido. Visto que os homens estão divididos, é natural que os jornais também o estejam. Um jornal imparcial seria aquele que não representasse opiniões associadas, e as opiniões solitárias não constituem público que legitime a existência de um jornal. Há, porém, um tipo de jornal, de cuja imparcialidade podemos francamente duvidar, e esse jornal é – o jornal ministerial.
É possível defender princípios e mesmo partidos com uma relativa imparcialidade. Defender governos com imparcialidade é absolutamente impossível, porque a defesa dos actos de um governo não dá lugar a que a supúnhamos desinteressada, e o crédito do princípio da imparcialidade está no desinteresse que se lhe atribui. Defender uma opinião que se bate ainda pode ser reputado um acto inegociável. Defender uma opinião que triunfou é procurar garantir o seu triunfo. Quando essa opinião é o governo, tudo leva a crer que não estamos a defender uma opinião, mas simplesmente – o governo.
De como esta defesa é pueril prova-o a nenhuma importância que se atribui aos órgãos dos governos e a zombaria, senão o desdém, de que eles são objecto.
Com efeito, as razões do jornal do governo são sempre as razões do governo. Pode o governo ser execrável, perdulário, dissoluto, liberticida, despótico. Para o seu jornal, para os seus jornais, ele é invariavelmente económico, disciplinador, formalista, tolerante, liberal.
Os partidos atacam o governo? – Segundo os jornais do governo esses partidos estão apenas sequiosos do poder.
A opinião mostra-se descontente com o governo? – Segundo os jornais do governo essa opinião não exprime senão os desígnios funestos de alguns solitários, disseminados díscolos.
Que confiança imputar a semelhantes juízos, se de antemão sabemos que eles serão optimistas? Eu não sei como há ainda jornalistas que se prestem a redigir jornais do governo, tão vã, tão nula, tão vazia é a sua tarefa. Eles não contribuem com uma palavra para o seu engrandecimento. Um charlatão, numa praça pública, afiançando uma pastilha, ainda encontra alguns clientes. Eles nem um só. Toda a gente encolhe os ombros diante do espectáculo da sua solidariedade, porque a essa solidariedade, com efeito, chama-se - cumplicidade e nunca as razões de um cúmplice tiveram sequer as aparências de um juízo imparcial.

“CENSURA”

De todos os vexames a que a liberdade de pensar ainda está exposta, o mais vexatório é a Censura, porque as leis, os tribunais e as penas são ainda a responsabilidade, enquanto que a Censura é a tutela.
No decurso da minha carreira de jornalista fui muitas vezes submetido a essa tutela, e posso depôr em como foram esses os piores quartos de hora da minha vida. Os julgamentos de imprensa e outras incómodas consequências dos meus actos de escritor, nunca feriram o meu orgulho. A Censura humilhou-me.
Nenhum acto de opressão dos poderes é mais vexatório, porque nenhum nos despoja mais directamente da liberdade. A Censura em rigor, não é um acto de opressão. – É a mão no pescoço. Devemos muitas vezes afrontar leis despóticas e juizes parciais. Muitas vezes espera-nos a prisão. Pois bem ! Isto não nos desapossa do sentimento da liberdade, porque no momento em que lançamos mão da pena, nada nos detém a mão, nem mesmo o temor da responsabilidade, que só é uma coacção eficaz para as naturezas pusilânimes e essas não manejam uma pena, como não manejam uma espada. Ao contrário, quase sempre se vai ao encontro das responsabilidades que comprometem a dignidade da inteligência e o sentimento do dever. Essas responsabilidades enobrecem-nos e tornam-nos mais corajosos.
Entretanto, somos livres, porque responsabilidade quer dizer liberdade.
Sob o peso da Censura temos o sentimento quase físico da coacção. Lançamos mão da pena, se somos forçados a fazê-lo, e a nossa pena não se move, como se alguém, ou alguma coisa, nos retivesse a mão. A Censura vai exercer-se mais tarde, mas exerce-se muito antes, e é isso que profundamente nos humilha, porque actua sobre nós, por efeito da sua coacção moral, antes de materialmente actuar sobre a nossa obra.
O acto material da Censura é o que nos molesta menos. Em que é que pode molestar-nos que um indivíduo, geralmente iletrado, se entretenha a ler os nossos escritos com um olho faccioso ? O que nos vexa até ao ponto de nos parecer que tudo se degradou em nós, é que essa censura que um outro vai exercer, começamos nós por a exercer sobre nós próprios. – e não há despotismo mais aviltante do que o que nos entra no sangue.
Já as leis de imprensa não são compatíveis com os regimes livres. As leis de imprensa visam a punir os delitos do pensamento e não há delitos do pensamento, visto que nunca foi um delito exprimir opiniões, sejam de que natureza for. Tudo o que na imprensa não é da jurisdição da imprensa é da jurisdição do direito comum. Uma lei de imprensa, mesmo livre, é um atentado à liberdade, porque põe limites no direito ilimitado de pensar. Mas o pensamento assusta ainda o homem, como nos tempos nebulosos em que se lhe revelava sob a forma do Diabo, e é forçoso que nos inclinemos perante as leis de imprensa que, uma ou outra vez, nos levam ao banco dos réus, sob o pretexto de que formulamos uma opinião. Despotismo sem máscara, não há meio de nos inclinarmos, a não ser que tenhamos uma alma de escravo. Só aplicam a Censura – eu sei! – os déspotas em vias de falência e os regimes em vias de dissolução, mas estas razões não nos consolam do vilipêndio.

1/9/1863 – Nasceu no Rio de Janeiro, João Pinheiro Chagas, jornalista, escritor, diplomata, político e um demolidor da monarquia. Embora a 31 de Janeiro estivesse preso, foi acusado como um dos seus organizadores e instigadores. Dirigiu o jornal «República Portuguesa». Obrigou Pimenta de Castro a demitir-se em 1915 e organizou o governo, alvejado a tiro, perdeu um olho. Escreveu diversas obras: «História da Revolta do Porto de 31 de Janeiro», «Trabalhos Forçados», «As Minhas Razões» e «Cartas Políticas», entre outros. Participou na revolta de 1908, tendo sido preso, depois da revolução foi ministro e Presidente do Ministério. Iniciado maçon em 1896 na Loja Luís de Camões, de Lisboa, com o nome simbólico de Armand Carrell. Faleceu em 28/5/1925em Lisboa.


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