7 de dezembro de 2009

Isto está bonito, está!

Sinceramente, nunca pensei assistir a uma degradação tão grande dos princípios fundamentais do direito e da credibilidade da justiça. Estamos a bater no fundo, mas também estou firmemente convicto de que há muitas formas de combater a corrupção, melhorar o funcionamento da justiça, revalorizar os princípios do Estado de direito. Só que a atitude responsável não é cruzar os braços mas sim pensar e elaborar um programa global de revitalização do Estado de direito e de combate à corrupção. Em seguida, começar a aplicá-lo com firmeza e sem usar a táctica habitual dos dois passos à frente e um atrás.

É o que acontece em Portugal?

Acho que sim e por isso é que a justiça está cada vez mais opaca, lenta e, sobretudo, não se compreende como, na generalidade dos países europeus e nos EUA, casos mais complicados são resolvidos em menos de um ano e cá demoram cinco, como no processo Casa Pia - uma vergonha para a justiça, como acontece com outros casos. Pergunto porque é que são lançados como bombas na comunicação social e depois nada acontece.

O que sugere para esses casos?

Ao menos que dissessem em que estado está a investigação, por que razão não andam mais depressa e sem revelar o segredo de justiça, o que é perfeitamente possível. Numa sociedade tão mediatizada como é a actual é possível, todos os anos, dar conta da investigação dos casos em curso e informar em quais está pronta. O que acontece é que a investigação sofreu tal demora - enquanto se aguarda por isto, aquilo ou aqueloutro - e se ultrapassam os prazos. Desse modo, sem que os superiores possam marcar prazos, é impossível gerir correctamente serviços públicos com a importância dos tribunais, do Ministério Público e da Polícia Judiciária! Este adiamento indefinido e quase indefinível de prazos, as prorrogações sem se saber porquê e os arquivamentos sem se conhecerem fundamentos geram uma enorme desconfiança.

Que vai contra o próprio direito?

Vai contra o direito, contra os princípios do Estado de direito, contra a Constituição - que diz que a justiça deve ser célere - e contra a Convenção Europeia dos Direitos Humanos - por essa lentidão Portugal já foi condenado várias vezes no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos -, mas parece que ninguém faz nada. Ou, por outro lado, há uns quantos juristas que se convencem de que isso se resolve com alterações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, o que é um erro. O problema não está nas leis, mas na forma de as aplicar e na falta de uma grelha de tempos úteis que não deva ser ultrapassada.

Resolvia-se o estado da justiça?

A justiça, no sentido amplo, não está ainda adaptada para dialogar com a comunicação social e entrar nos pormenores de casos concretos. A verdade é que ultimamente vimos os dois órgãos mais elevados do sistema de justiça do Estado democrático português - por um lado, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, por inerência, presidente do Conselho Superior da Magistratura e, por outro, o procurador-geral da República - num vaivém de meias palavras mas sem uma explicação clara e franca que o País perceba.

Há até um piscar de olhos de ambos à "sua" comunicação social?

Exactamente. Quer o presidente do Supremo, quer o procurador-geral da República não cumpriram, até hoje, um preceito constitucional que tem muita importância: o artigo 48.º da Constituição. É chamado "Participação na Vida Pública" e, no qual, depois de se dizer no n.º 1 "Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida pública", o n.º 2 acrescenta: "Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre os actos do Estado e de mais entidades públicas." Ora, esta situação não foi cumprida pelas duas mais altas instâncias do sistema de justiça. Ainda vão a tempo de dar explicação cabal à opinião pública sobre o que fizeram e porque fizeram sem terem de violar o segredo de justiça. Podem perfeitamente explicar tudo o que não implique violar o segredo de justiça.

Verifica-se a anulação dos seus poderes e do que devem fazer ou há um braço-de-ferro entre eles?

Não creio que haja um braço-de-ferro entre ambos; até tem havido uma colaboração muito eficaz porque da Procuradoria mandam-se certidões para o Supremo, do Supremo mandam-se despachos para a Procuradoria, depois voltam a mandar para lá e para cá, mas demoram semanas nisto. Há aqui um claro vaivém institucional que se arrisca, se não for dado um esclarecimento cabal à opinião pública, a que amanhã as mais altas instâncias da justiça possam ser acusadas por alguém de estar a meter a verdade na gaveta.

Que a comunicação social evita?

A comunicação social tem feito o que pode e, se, às vezes, ajuda a violar o segredo de justiça, é porque alguém de dentro do segredo de justiça lhe fornece as indicações. O que é evidentemente grave! Acho que neste momento o problema já é muito mais amplo do que a questão da violação do segredo de justiça, é a falta de credibilidade e a falta de respeito pelas instituições do sistema. Porque não actuam depressa e com eficácia, não obtêm resultados e nem se explicam ou sabem explicar-se. Este método de fazer meias declarações, em plena rua ou à entrada e saída de uma porta, a tentar fugir à comunicação social, a dizer que não se vai dizer nada mas depois dizendo coisas, isto não é de tempos modernos. Quem ocupa estes cargos tem de ter capacidade e coragem de parar, enfrentar a comunicação social e responder olhos nos olhos: "Isto é assim por esta razão. Aqui nada refiro porque é segredo de justiça, mas posso dizer o seguinte sobre aquilo." Isto era o mínimo que se podia esperar para o País ter confiança!

E não acontece devido à crise na justiça e desses dois órgãos institucionais ou por conivência com a realidade política em que se vive?

Não tenho elementos que permitam dizer que há conivência ou cumplicidade, mas há um ponto para o qual é importante chamar a atenção: a legislação sobre o segredo de justiça. Que diz, e bem, que a investigação de certos crimes enquanto a Polícia Judiciária e o Ministério Público não chegam a uma conclusão para acusar ou não acusar deve decorrer em segredo. Este é um princípio geral que está correcto e existe nos países civilizados. O que se verifica é que há elementos de dentro do sistema que volta e meia, por razões desconhecidas, quebram o segredo de justiça e põem cá fora elementos, umas vezes verdadeiros, outras distorcidos, que colocam em causa a honestidade de figuras importantes, seja do mundo da política, da economia ou do espectáculo. A reacção clássica, à qual continuamos agarrados, é dizer "houve um crime de violação de segredo de justiça, vamos à procura de quem o cometeu e punir". Só que a reacção não pode ser só essa, porque já se viu que não produz grandes resultados. O importante é que a lei venha dizer o seguinte: se o segredo de justiça for violado em termos de prejudicar A, B ou C, como é que podem defender-se do que é dito ilegalmente sobre eles?

O que deverá acontecer então?

Devem ter, no mínimo, direito de acesso imediato ao processo que decorre contra eles e o direito de se defender. Mas não é dizendo que estão inocentes, é saber do que são acusados e defenderem-se! Os juristas pensam que feitas leis, por hipótese perfeitas, os problemas estão resolvidos, mas uma concepção realista do direito diz-nos que não. E aí é que começam os problemas: quem vai aplicar e interpretar? O grande problema é saber quais os direitos de defesa que se dão às pessoas afectadas ou cuja honorabilidade é posta em causa pela violação do segredo de justiça antes de chegar à fase de julgamento. Porque, quando se chega aí, todos os direitos de defesa estão assegurados e, às vezes, até com excesso de garantismo.

A questão reside na violação do segredo?

Antes dessa fase, se há uma violação do segredo de justiça, o que se passa é termos casos como os que estão a decorrer com políticos, empresários e homens da comunicação social - como na Casa Pia - que permitiram, até certa altura, fazer julgamentos sumários na praça pública. Como é que a lei estrutura um sistema de defesa jurídica ou judicial contra essa prematura revelação de suspeitas ou acusações que podem não ter fundamento e ser distorcidas em certos aspectos enquanto deixam outros na sombra?

Pode exemplificar um desses?

Quando foi do caso Freeport, vi nos jornais transcrições quase integrais de documentos que constavam do processo. Até havia uma nota da direcção do jornal a dizer "esta reprodução é integral, excepto uma frase, que não pode ser revelada". Quem me garante que essa frase não seja um bom argumento em defesa da inocência de quem é acusado de crimes? Portanto, mais importante do que falar em reforçar penas ou medidas contra a violação do segredo de justiça, é proteger as vítimas dela.

Considera que o primeiro-ministro é também uma vítima?

É óbvio que tem sido, designadamente no caso Freeport, que estranhamente ainda não acabou e nem se sabe porquê. A polícia inglesa já fechou o caso e nós, que estávamos à espera de elementos deles, já não os teremos. Porque é que o nosso caso não acaba? Ninguém entende. Também aqui o procurador-geral deveria explicar porque é que não acabou já em Portugal? O mesmo se passa agora com o caso "Face Oculta", em que, claramente, foi através de violações de segredo de justiça que se soube que as escutas feitas legitimamente ao cidadão Armando Vara - por suspeita de envolvimento em condutas criminosas - tinham apanhado na conversa o primeiro-ministro. Levantaram aí uma série de problemas jurídicos que me fazem pensar que o problema hoje não está - na Assembleia da República tem-se ouvido muito isso - em agravar as penas para quem viola o segredo de justiça. Já se sabe que nunca se descobre quem viola!

Disse, em Janeiro, que existia uma campanha de raiva contra José Sócrates. Acredita na tese de tentativa de homicídio de carácter?

Achei que em Janeiro e Fevereiro, a propósito do caso Freeport, isso aconteceu. Hoje acho que já não é bem a mesma coisa.

Refere-se ao caso "Face Oculta"?

Sim, o que está a acontecer é que se descobriu uma rede - não sei se é tentacular - de pessoas ligadas ao PS que alegadamente estão envolvidas em sistemas de corrupção. Importa não esquecer que com o caso BPN e BPP também se descobriu um conjunto de personalidades ligadas ao PSD dadas como suspeitas de casos de corrupção e que agora até já estão constituídas arguidas formalmente. Quando se trata de redes de influências e de tráficos de influências, que abrangem simultaneamente, nos últimos dois anos, altas figuras dos dois maiores partidos, penso que já é difícil dizer que haja uma campanha de ódio contra uma única pessoa, designadamente para com o líder de um partido ou o primeiro-ministro. No caso Freeport foi diferente, ninguém falava em redes, mas três ou quatro pessoas a canalizar tudo contra a figura do primeiro-ministro. Além de que o ar de cavalgada triunfal de muita comunicação social, convencida de que tinha chegado a hora de assassinar o primeiro-ministro, como os senadores romanos assassinaram Júlio César em pleno Senado, não revela muita isenção. Faço a seguinte reflexão: os principais dados que colocaram sob suspeita o primeiro-ministro em Janeiro, no caso Freeport, foram transmitidos à comunicação social e por esta, de um modo geral, tratados como se fossem provas cabais e completas de incriminação da pessoa. Passou quase um ano e o Ministério Público (MP) não encontrou mais nada, nem sequer sentiu necessidade de ouvir o primeiro-ministro, de o constituir arguido ou de o acusar. Se tenho de confiar que o MP actua com base na legalidade e no princípio da boa-fé, se não o fez até fim de Novembro é porque não apareceu algo consistente. Se de Janeiro a Novembro nada consistente aparece, como é que em Janeiro se lança todo aquele conjunto de suspeitas?

A que, no Verão, o próprio presidente da República acrescenta mais suspeitas com as escutas.

Sim, mas aí já numa outra matéria. Acho que esse tema foi lateral e que teve a ver com um certo conflito institucional que, infelizmente, tende a existir sempre entre o Governo e a Presidência. Existiu com Eanes e no segundo mandato de Soares, existiu sob formas mais aveludadas com Sampaio e está a existir agora, não desde o início, entre José Sócrates e Cavaco Silva. Considero que o Presidente, que eu apoio e acho que tem sido um bom governante, não foi feliz na maneira como reagiu - quer antes quer depois - a esse problema. Mas, aí, não estamos num problema que estivesse ou tenha sido entregue à justiça. É um episódio do conflito institucional entre chefias de Estado e Governo, que faz parte das tradições, mesmo em monarquia! Diria que tal episódio, sendo infeliz, não tem a ver com o problema da crise da justiça.

Mas atirou mais lama sobre a acção do primeiro-ministro?

Possivelmente. Creio que as pessoas tenderam, pelo que vi nos noticiários da televisão, comentadores e analistas, a considerar a questão como política. Os que são da área PSD e CDS defenderam o Presidente, os do PS tentaram defender o primeiro-ministro.

Considera que houve leviandade de Belém nessas acusações?

Repito que foi um episódio infeliz e o resultado, um match nulo. Não me preocupa muito, porque é normal haver esse tipo de conflito institucional.

Foi um match nulo, mas que atingiu a credibilidade do Presidente para a futura recandidatura?

Não sou bruxo nem adivinho e ainda falta quase um ano e meio para as eleições presidenciais. Muita coisa pode acontecer, mas é um facto, provado pelas sondagens, que o Presidente sofreu uma quebra na popularidade maior do que é normal com o episódio. O que significa que a maioria da opinião pública achou que não andou bem. Se vai ter repercussões na eleição, é muito cedo para avaliar, mas é claro que, se o Presidente tiver o azar de fazer mais três ou quatro coisas assim, naturalmente afectará as oportunidades de uma recandidatura. Quem sabe se não fará, a partir daqui, coisas excelentes que o reabilitem perante a opinião pública?

Por essa razão, está a fazer uma gestão de silêncio rigorosa?

Num sistema como o nosso, quem governa é o Governo e não o Presidente. Este tem de fazer uma gestão prudente das declarações e dos silêncios. O que me parece, no entanto, é que era altura de o Presidente da República, numa mensagem à Assembleia da República ou por qualquer outra forma, chamar a atenção para os grandes problemas da actualidade e pedir a colaboração de todos - Parlamento, Governo, tribunais, MP, partidos, comunicação social, universidades - para os enfrentarmos com êxito. A saber: crise da justiça, combate à corrupção e o desemprego. Não culpo o Presidente por não querer interferir no caso Freeport ou no "Face Oculta", aí cumpre o dever de reserva ao não fazer de comentador jornalístico dos vários episódios, que, aliás, estão constantemente a mudar. O que posso desejar é que o Presidente da República, vendo que vários aspectos da vida colectiva portuguesa estão deteriorar-se muito e a entrar numa espécie de beco sem saída, deve dizer ao País e sem medo: "Estamos a enfrentar problemas muito difíceis e as minhas ideias - não tendo eu a responsabilidade de governar mas de alertar - são as seguintes…"

Designadamente, um apelo muito duro sobre a crise da justiça?

Não tenho dúvidas de que sim, mas sem se deixar entalar pelos seus conselheiros juristas, numa língua exclusivamente jurídica e na receita habitual de "vamos rever os códigos e abrir mais 25 tribunais". Não é assim!

Depreendo que acha que Cavaco Silva está mal aconselhado.

Considero que o Presidente da República, sempre que tem falado com base em textos jurídicos que manifestamente não podem ser só da sua mão, não tem sido bem aconselhado. Aliás, gostaria de dizer em relação ao problema da justiça e da corrupção - sobretudo o da corrupção, que está a avolumar e a minar os fundamentos do Estado democrático português - como é que encaro a sua solução, sem querer entrar nos pormenores do dia-a-dia. Em primeiro lugar, acho que deviam ser aprovadas, e quanto antes, as medidas já propostas por vários sectores, designadamente o pacote João Cravinho; a criminalização do enriquecimento ilícito - que me parece fundamental e não é de todo inconstitucional - e o necessário reforço do Ministério Público e da Polícia Judiciária, bem como dos tribunais em meios humanos e materiais. Essas propostas que têm sido feitas são mais ou menos as únicas. Gostava de ver o problema numa perspectiva mais ampla, alargando o campo em que deve situar-se o combate à corrupção, numa perspectiva de médio prazo, porque a corrupção não acaba de um dia para o outro nem se extingue por decreto. Precisa de um combate permanente, como todos os que se fazem ao crime. Por isso, proponho um conjunto de 15 medidas contra a corrupção que existe em Portugal.

Destaca alguma entre as 15?

A de o Presidente da República falar ao País e a de o reforço dos poderes e dos meios do conselho de prevenção da corrupção, criado recentemente, que funciona junto do Tribunal de Contas - presidido por Guilherme d'Oliveira Martins - e que tem feito um trabalho muito importante. Depois, é necessário o reforço dos serviços inspectivos da administração pública e é fundamental aprovar-se uma lei regulamentadora das actividades do lóbi como existe nos EUA para não andarmos todos a fingir que não existe e que tudo se passa em almoços e conversas de amigos e em jogos de golfe ao fim-de-semana, que é uma maneira de manter a actividade do lóbi opaca.

Essas medidas eliminavam a corrupção e o tráfico de influências?

Ajudavam a evitar, porque permitiriam punir severamente quem, não estando inscrito, fizesse lóbi. O registo dos lobistas e suas actividades mostraria quem, em certo período, esteve 20 vezes com o ministro, o secretário de Estado, o director-geral ou o autarca e, se se verificasse uma adjudicação de um concurso que, saltando por cima das regras do direito, beneficiasse uma empresa, podia-se tirar conclusões e iniciar a investi- gação criminal.

Quando vemos a inspecção do Banco de Portugal falhar nos casos BPP e BPN, pode questionar--se o seu funcionamento no País?

Não funcionou bem, embora deva reconhecer que essa situação teve a ver com a mentalidade ultraliberal que se instalou, primeiro nos EUA, com Reagan, e na Grã-Bretanha, com Thatcher, e depois em reguladores como a Reserva Federal norte-americana, o Banco Central de Inglaterra e a nível nacional, de que aquela explosão de criatividade dos novos instrumentos financeiros não regulados era boa para a economia.

A regulação deverá ser maior?

Até o próprio combate às offshores é essencial, porque está muito longe de se ter conseguido identificá-las. Vi uma lista da OCDE com mais de 20, mas são apenas as que todos conhecem. A velha City de Londres não está na lista, nem estados e cidades dos EUA que têm esses regimes jurídicos. Na Suíça, já se deram uns passos e foi um grande avanço. É uma batalha que demorará muito tempo e contra ela erguem-se poderosos interesses.

Também refere nas suas medidas o papel de organizações não governamentais (ONG). Porquê?

Há muitas ONG que se dedicam ao combate à corrupção. Aquela que mais me tem impressionado é a Transparency International, que, sem fins lucrativos, se dedica a estudar o fenómeno da corrupção, encontrar medidas de espectro largo para o combater e colaborar com os governos que assim o desejarem na tomada de medidas para a combater. Creio que Portugal está na situação típica em que devia pedir a esta organização - ou semelhante - que fizesse um acordo de cooperação para vir aconselhar o Governo e o Parlamento sobre o combate eficaz à corrupção, sem exigir mudança de leis penais. Curiosamente, a principal condição que a organização põe para colaborar é que o respectivo Governo dê provas de estar efectivamente empenhado em combater a corrupção.

O que seria problema em Portugal, quando vemos tantos políticos envolvidos em casos!

Se a minha sugestão tiver eco na Assembleia da República e se esta começar a insistir nos temas, seja o Governo do PS ou do PSD, é possível criar-se uma onda na opinião pública que tornará indispensável fazer o que a Transparência Internacional sugere: que o combate à corrupção comece nas escolas. Deveria criar-se uma cadeira de educação cívica obrigatória para os alunos do ensino básico e secundário, que devia incluir um capitulo sobre o que é a corrupção, os terríveis inconvenientes que tem e como se combate na dupla perspectiva de prevenção e repressão. Como acontece em universidades anglo- -saxónicas, com disciplinas de ética aplicada às profissões. Se o Estado não for capaz de combater a corrupção, a corrupção acabará por dissolver o Estado. Ou seja, não estamos a falar de coisa pequenas ou episódios, mas de problemas profundos e sistémicos que podem pôr em causa o regime, a democracia, o Estado de direito e o respeito pela justiça.

Mas como é que a sociedade civil vai exigir essa ética se as suas classes políticas e judiciais não se comportam a tal nível?

A partir do momento em que a pressão social for maior contra a corrupção ou contra a falta de ética do que está a ser a pressão no sentido de as pessoas enriquecerem de qualquer maneira, nesse momento, mesmo os que porventura se sintam tentados a prevaricar pensarão duas vezes! Com todas estas medidas, e outras que faltam aqui, talvez consigamos daqui a um par de anos apanhar 100% dos casos de corrupção. Mas isto se apanharmos 10% ou 20% e se esses casos forem tratados rapidamente e se as pessoas forem para a cadeia, como sucede em Inglaterra ou na América, ou como aconteceu com o empresário Madoff, que em poucos meses foi julgado e condenado.

Surpreendeu-o a decisão do tribunal ao suspender do cargo José Penedos e Armando Vara se ter auto-suspendido?

Não me surpreendeu, é perfeitamente razoável atendendo às suspeitas que existem e que ainda não sabemos se são verdadeiras. Gozam de presunção de inocência até ao final do julgamento, mas, a partir do momento em que há suspeitas da prática de actos graves, acho que as pessoas se devem auto-suspender ou, se não tiverem coragem para o fazer, devem ser suspensas pelo tribunal.

Portugal confronta-se com um grande problema no desemprego. Como se pode combater?

Isso é um problema até para a grande maioria dos economistas. Segundo a teoria clássica, o desemprego só diminui se houver criação de novos empregos, novos investimentos e a criação de novas empresas ou alargamento das que existem. Haverá que esperar, segundo a teoria clássica, que o ciclo económico passe de uma fase de depressão para uma de expansão, que trará mais confiança, investimento e criação de emprego.

Portugal está a preparar-se?

Nesse aspecto, temos feito os possíveis com a ideia do Governo em dar uma formação adequada aos que estão no desemprego para quando se verificar a retoma. Acho que Portugal faria bem em mandar estudar a sério as experiências que têm sido feitas em França e noutros países europeus com os chamados contratos de incentivo ao emprego.

As empresas estão a colaborar com o Governo para a solução?

Não, até agora estão no braço-de-ferro habitual - "Nós não podemos fazer mais nenhum esforço, porque senão vamos à falência" - enquanto o Governo pede que façam mais. Aí está um aspecto em que acho que a mensagem do Presidente da República ao País também poderia ajudar.

Se Manuela Ferreira Leite tivesse ganho as eleições, as grandes obras públicas não avançariam. Concorda com o TGV?

Se não tivéssemos em Portugal um grave problema de endividamento do Estado, acho que a política de grandes obras públicas, como o TGV, o novo aeroporto de Lisboa e muitas outras - barragens, estradas, hospitais, escolas - era a política acertada. Mas, em épocas de recessão, o Estado deve investir mais mas em investimentos que sejam geradores de emprego e de trabalho intensivo.

Mas o TGV e o novo aeroporto são obras necessárias?

Os estudos que vi demonstram que são necessários. Mais o aeroporto que o TGV, porque este é uma questão de ligação à Europa - além de que houve acordos internacionais que se celebraram nessa matéria. Precisamos de uma comissão independente que, num mês, diga se esse agravamento do endividamento do Estado é comportável ou não.

Este Governo pode sentir-se tentado mesmo sem capacidade?

O que pressinto é que o Governo quer avançar sem mais estudos e a oposição quer parar sem mais estudos.

O que leva à questão muito preocupante do défice português.

Este défice, como o dos demais países europeus por causa da crise, vai levar uns anos a corrigir. De novo temos a visão da esquerda e da direita. Creio que são formas sectárias de ver o problema e, não tenhamos ilusões, é um quebra-cabeças que vai levar anos a resolver e que não deve ser com demagogia. Se, nesta matéria, as oposições quiserem impor ao Governo medidas demagógicas, teremos uma crise política. Seja este ou outro que embarque nesse tipo de medidas para resolver o desemprego, acabamos como a Albânia antes da queda do Muro de Berlim.

Não aumentar impostos é certo?

Aumentar ou não os impostos nunca é certo nem errado, depende do que é que é preciso! Já propus uma vez que os partidos fizessem um acordo de cavalheiros dizendo: não vamos discutir impostos. Quando é possível, baixam-se; quando não, mantêm-se; quando for necessário, sobem. Não vale a pena andarmo-nos a enganar.

Depois do segundo Orçamento Rectificativo, o Governo foi acusado de burla eleitoral. Para evitar novas acusações, Sócrates deve cumprir a promessa de não aumentar os impostos?

Desde que a tenha feito, deve cumpri-la. Mas, se estivesse no seu lugar, não teria feito a promessa, porque acho que não se as deve fazer sem ter a certeza de as poder cumprir.

Portugal está a fugir ao ritmo da União Europeia?

Já estivemos a convergir com a Europa ao longo de 20 anos de adesão, mas, quando nos estávamos a preparar para iniciar a segunda parte desse caminho, a mais difícil, tivemos diversas crises - internas e internacionais - e começámos a andar um pouco para trás. O problema é que o nosso paradigma de crescimento económico está esgotado.

Foi ministro dos Negócios Estrangeiros do anterior Governo. Acha que esta política está a ser bem conduzida hoje em dia?

Penso que sim. A única diferença em relação a mim, mas que não me preocupa nem é fundamental, é uma diferença de estilo. Talvez por eu ter vivido muito na Inglaterra e na América, achei que seria interessante transformar a política externa num objecto de debate público. Por isso, tomei certas posições, porventura um pouco mais enfáticas, para suscitar a controvérsia e para que o debate público não passasse apenas pelas questões internas, mas também pelas de política internacional. Parece que o consenso da opinião pública e da comunicação social não foi muito favorável a esse estilo e que preferem um estilo como o de Luís Amado, que é também o estilo que teve Jaime Gama quando foi ministro. Que é ir tratando dos problemas no segredo das negociações diplomáticas e não trazer para a controvérsia política normal os temas de política externa. No entanto, a orientação da política externa parece-me correctíssima e conseguimos coisas importantes, designadamente o Tratado de Lisboa.


Entrevista a Freitas do Amaral aqui.

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