15 de janeiro de 2009

Os principais objectivos da política externa dos Estados Unidos da América XVIII. Por Noam Chomsky.

Como funcionava a Guerra Fria.

Apesar de muita pretensão, a segurança nacional foi a principal preocupação dos estrategas americanos e das autoridades eleitas. Os dados históricos revelam isso claramente. Poucos analistas sérios questionaram a posição de George Kennan de que "não é a força militar russa que nos está a ameaçar, e sim a força política russa" (outubro de 1947); ou a opinião consistente do presidente Eisenhower de que os russos não pretendiam a conquista militar da Europa Ocidental e que o papel mais importante da NATO era "transmitir confiança às populações desprotegidas, confiança essa que as tornariam politicamente inflexíveis em oposição às infiltrações comunistas”. Mesmo assim, os EUA descartaram a possibilidade de uma solução pacífica para o conflito da Guerra Fria, que teria deixado a "ameaça política" intacta. Na sua história sobre as armas nucleares, McGeorge Bundy escreve que ele não estava "ciente de nenhuma proposta contemporânea séria... que os mísseis balísticos seriam de alguma forma proibidos, por um acordo, antes de eles já estarem instalados", muito embora eles fossem a única ameaça militar concreta aos Estados Unidos. Sempre foi a ameaça “política” do chamado
comunismo a principal preocupação. Lembre-se “comunismo” é um termo amplo e inclui todos aqueles com “habilidade de controlar os movimentos de massa... coisa que não temos a capacidade de realizar”, como o secretário de Estado John Foster Dules admitiu secretamente ao seu irmão Allen, diretor da CIA. “Os pobres são os que eles mais atraem, ele acrescentou, “e estes sempre quiseram saquear os ricos”. Então, eles devem ser vencidos para proteger a nossa doutrina de que os ricos devem saquear os pobres.

Naturalmente, tanto os EUA quanto a Rússia preferiam que o outro lado desaparecesse, mas visto que isso implicaria obviamente uma eliminação mútua, então um sistema de gestão global,
chamado Guerra Fria, foi estabelecido. De acordo com a opinião convencional, a Guerra Fria foi um conflito entre duas super-potências, causado pela agressão soviética, na qual tentávamos conter a União Soviética e proteger o mundo dela. Se esse ponto de vista é uma doutrina teológica, não há necessidade de discuti-la. Entretanto, se se pretende lançar alguma luz sobre essa história, poderíamos facilmente testá-la, tendo em mente um ponto muito simples: se quisermos entender a Guerra Fria, devemos observar os acontecimentos da Guerra Fria. Se assim fizermos, um quadro bens diferente surgirá. No lado soviético, os acontecimentos da Guerra Fria foram repetidas intervenções na Europa Oriental: tanques em Berlim Oriental, Budapeste e Praga. Essas intervenções foram realizadas ao longo da mesma rota que serviu para atacar, e praticamente destruir, a Rússia por três vezes, só neste século. A invasão do Afeganistão é o único exemplo de uma intervenção fora de rota, embora também na fronteira soviética. No lado americano, as intervenções eram no mundo inteiro, reflectindo o status alcançado pelos EUA, como a primeira potência verdadeiramente global da história.
Internamente, a Guerra Fria ajudou a União Soviética a entrincheirar no poder uma classe dirigente militar-burocrática e deu aos Estados Unidos um motivo para obrigar a sua população a subvencionar a indústria de alta tecnologia. Não é fácil vender tudo isso às populações internas. A técnica utilizada era o antigo álibi – medo ao grande inimigo. A Guerra Fria previa isso também. Não importava o quão bizarra fosse a ideia de que a União Soviética, com os seus tentáculos, estava a estrangular o Ocidente, o “Império do Mal” era de facto mal, era um império e era brutal. Cada superpotência controlava o seu inimigo principal – a sua própria população – aterrorizando-a com os crimes (absolutamente reais) do outro. Numa avaliação crítica, portanto, a Guerra Fria foi uma espécie de acordo tácito entre a União Soviética e os Estados Unidos, sob o qual os EUA conduziram as suas guerras contra o Terceiro Mundo e controlaram os seus aliados na Europa, enquanto os governantes soviéticos mantiveram com garras de aço o seu próprio império interno e os seus satélites na Europa Oriental – cada lado utilizando o outro para justificar a repressão e a violência no seu própria domínio.

Então, por que é que a Guerra Fria terminou e como o seu fim alterou as coisas? Na década de 1970, os gastos militares soviéticos estavam a extrapolar os limites, e os problemas internos estavam a aumentar com a estagnação económica e as crescentes pressões pelo fim do regime tirânico. A potência soviética estava, de facto, declinando internacionalmente há uns trinta anos, como um estudo do Centro de Informação de Defesa mostrou, em 1980. Poucos anos depois, o sistema soviético desmoronaria. A Guerra Fria terminou com a vitória daquele que sempre tinha sido, de longe, o mais rico e mais poderoso concorrente. 0 colapso soviético fez parte de uma catástrofe económica geral nos anos 1980, que foi mais dura na maior parte dos domínios do Ocidente no Terceiro Mundo do que no Império Soviético. Como já vimos, a Guerra Fria teve elementos importantes no conflito Norte – Sul (para usar o eufemismo contemporâneo em relação à conquista europeia do mundo). A maior parte do Império Soviético tinha sido constituída por antigas dependências, quase coloniais, do Ocidente. A União Soviética tomou um caminho independente, fornecendo assistência para os alvos de ataque do Ocidente e evitando uma violência ocidental ainda pior. Com o colapso da tirania soviética, e de se esperar que grande parte da região retorne ao seu tradicional status, com os mais altos escalões da antiga burocracia desempenhando o papel das elites do Terceiro Mundo que se enriquecem servindo os interesses dos investidores estrangeiros. Entretanto, se esta fase singular terminou, os conflitos Norte – Sul continuam. Um dos lados pode ter-se retirado parcialmente do jogo, mas os EUA procedem como antes – na realidade mais livremente – com o obstáculo soviético sendo uma coisa do passado. Não deve ter surpreendido ninguém que George Bush comemorasse o fim simbólico da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, invadindo imediatamente o Panamá e anunciando aos quatro ventos que os EUA subverteriam a eleição na Nicarágua, mantendo o estrangulamento económico e o ataque militar, a menos que o “nosso lado” ganhasse. Nem foi necessário grande raciocínio para Elliot Abrams observar que a invasão do Panamá pelos Estados Unidos era incomum, porque pôde ser conduzida sem o receio de uma reacção soviética em qualquer parte do mundo, ou para os inúmeros comentaristas, durante a crise do Golfo, acrescentarem que agora os EUA e a Inglaterra estavam livres para usar uma força ilimitada contra
os seus inimigos do Terceiro Mundo, já que não estavam inibidos pelo obstáculo soviético. Logicamente, o fim da Guerra Fria traz também problemas. Notoriamente, a técnica de controlo da população interna sofreu uma alteração, um problema, como já vimos, identificado nos anos 1980. Novos inimigos têm de ser inventados. Torna-se cada vez mais difícil esconder que “os pobres que procuram despojar os ricos” têm sido sempre o verdadeiro inimigo – em particular os "hereges" do Terceiro Mundo, que buscam escapar do papel de súbditos.

Sem comentários: