29 de novembro de 2008

Os principais objectivos da política externa dos Estados Unidos da América X. Por Noam Chomsky.

Ensinando uma lição à Nicarágua.

Não foi apenas o caso de El Salvador que foi ignorado pelas principais correntes da comunicação de massa norte-americana durante a década de 1970. Nos dez anos anteriores à queda de Anastasio Somoza, em 1979, a televisão norte-americana - todas as redes - dedicaram exactamente uma hora à Nicarágua, inteiramente relacionada com o terremoto de Manágua, em 1972. De 1960 a 1978, o "The New York Times" publicou três editoriais sobre a Nicarágua. Não porque algo estivesse a acontecer, mas sim porque qualquer coisa que lá estivesse a acontecer não seria digna de registo. A Nicarágua não foi motivo de preocupação enquanto o regime tirânico de Somoza não foi desafiado. Quando o seu regime foi desafiado pelos sandinistas, no final dos anos 1970, os EUA tentaram instituir o chamado "Somozismo sem Somoza", isto é, todo o sistema corrupto seria mantido intacto, mas com outra pessoa na liderança. Como isso não funcionou, o então presidente Carter tentou manter a Guarda Nacional de Somoza como uma base para a potência norte-americana.

A Guarda Nacional sempre foi notoriamente brutal e sádica. Em junho de 1979, levou a cabo uma
série maciça de atrocidades na guerra contra os sandinistas, bombardeando bairros residenciais em Manágua, matando dezenas de milhares de pessoas. Por essa altura, o embaixador norte-americano enviou um telegrama à Casa Branca dizendo que seria desaconselhável mandar a Guarda Nacional suspender o bombardeamento, porque isso poderia interferir na política de manter a Guarda no poder e deixar os sandinistas de fora. O nosso embaixador na Organização dos Estados Americanos (OEA) também falou a favor do "Somozismo sem Somoza", mas a OEA rejeitou prontamente a sugestão. Poucos dias depois, Somoza voou para Miami com o que restava do Tesouro Nacional, e a Guarda desmoronou. O governo Carter levou os comandantes da Guarda para fora do país em aviões com sinais da Cruz Vermelha (um crime de guerra) e começou a reconstituí-la nas fronteiras da Nicarágua. Os EUA também usaram a Argentina como uma intermediária. Naquela época, a Argentina estava sob o comando de generais neonazistas, que deram uma folga na tortura e no assassinato da sua própria população para ajudar a restabelecer a Guarda logo rebatizada de os contras ou "guerreiros da liberdade”. Reagan utilizou-os para lançar uma guerra terrorista em grande escala contra a Nicarágua, combinada com uma guerra económica, que foi muito mais letal ainda. Foram também intimidados outros países para que não enviassem ajuda. Mesmo assim, apesar dos níveis astronómicos da ajuda militar, os EUA não conseguiram criar uma força militar viável na Nicarágua. Isso foi realmente notável, analisando bem. Nenhuma guerrilha no mundo obteve tantos recursos, mesmo remotamente, como os contras obtiveram dos EUA. Provavelmente poderia iniciar-se uma insurgência guerrilheira, na regiões montanhosas dos Estados Unidos, com tais recursos.
Por que os EUA foram tão longe na Nicarágua? A organização de desenvolvimento internacional a Oxfam - explicou os motivos verdadeiros ao declarar que na sua experiência de 76 anos em países em desenvolvimento "a Nicarágua foi... excepcional no esforço e no firme compromisso daquele governo... em melhorar as condições de vida do povo e em estimular a sua participação activa no processo de desenvolvimento". Dos quatro países centro-americanos onde a Oxfam teve presença significativa (El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua), somente na Nicarágua houve um real e substancial esforço em resolver as injustiças da posse da terra e em estender os serviços médicos, educacionais e agrícolas às famílias de camponeses pobres.
Outras organizações contaram histórias semelhantes. No início da década de 1980, o Banco
Mundial considerou "alguns sectores da Nicarágua extraordinariamente mais bem-sucedidos do que em qualquer outra parte do mundo". Em 1983, o Banco Interamericano de Desenvolvimento concluiu que "a Nicarágua fazia notáveis progressos no sector social e estava a lançar bases para um desenvolvimento socio-económico a longo prazo”.
O sucesso das reformas sandinistas aterrorizaram, então, os estrategas norte-americanos. Eles
sabiam que, "pela primeira vez, a Nicarágua tinha um governo que se interessava pelo povo,
conforme afirmou José Figueres, o pai da democracia na Costa Rica. Embora Figueres tenha sido o principal líder democrático na América Central durante quarenta anos, as suas inaceitáveis
observações sobre o mundo real foram completamente censuradas pela comunicação de massa norte-americana. O ódio provocado pelos sandinistas por estes tentarem dirigir recursos aos pobres (sendo até bem sucedidos nisso) foi realmente magnífico de se observar. Praticamente todos os estrategas políticos dos EUA compartilharam esse ódio, atingindo um verdadeiro frenesim. Nos idos de 1981, um membro da Secretaria de Estado alardeou que nós iríamos "transformar a Nicarágua na Albânia da América Central", isto é, pobre, isolada e politicamente radical, de modo a que o sonho sandinista de criar um modelo novo e exemplar para a América Latina seria um fracasso. George Shultz chamou aos sandinistas "um cancro, bem aqui perto das nossas terras", que tinha de ser destruído. Na outra ponta do cenário político, um líder do Senado, o liberal Alan Cranston, declarou que, se não fosse possível destruir os sandinistas, teríamos então de deixá-los "apodrecer no [seu] próprio pus”. Então, os Estados Unidos lançaram um triplo ataque contra a Nicarágua. Primeiro, exercendo uma extrema pressão sobre o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento para suspenderem todos os projectos de assistência ao país. Segundo, lançaram a guerra dos contras
juntamente com uma guerra económica ilegal para acabar com o que a Oxfam correctamente chamou de "a ameaça de um bom exemplo".

Os terríveis ataques terroristas dos contras, sob ordens dos EUA, em direção aos "alvos leves"
contribuíram, juntamente com o boicote económico, para o fim de toda e qualquer esperança de
desenvolvimento económico e reforma social. O terror norte-americano assegurou que a Nicarágua não desmobilizasse o seu exército e enviasse os seus parcos e limitados recursos para a reconstrução das ruínas, que foram deixadas pelos ditadores apoiados pelos EUA e pelos crimes dos funcionários de Reagan. Uma das mais respeitáveis correspondentes da América Central, Julia Preston, escreveu (trabalhava na época para o "Boston Globe") que "autoridades do governo afirmaram estar contentes em ver os contras debilitarem os sandinistas, forçando-os a desviar os seus escassos recursos para a guerra e afastando-os, assim, dos programas sociais . Aquilo era fundamental, já que os programas sociais eram o coração de um bom exemplo que poderia contaminar outros países da região e corromper o sistema americano de roubo e exploração. Recusámo-nos, até mesmo, a prestar ajuda na hora da catástrofe. Em 1972, após um terramoto, os EUA enviaram uma considerável soma de recursos em auxílio à Nicarágua, sendo que a maior parte desses recursos foi roubada por Somoza. Entretanto, em 1988, quando um desastre natural - o furacão Joan - abalou a Nicarágua, nós não enviámos sequer um centavo, porque, se o tivéssemos enviado, este centavo provavelmente teria chegado ao povo e não aos bolsos de um bandido rico. Ainda pressionámos os nossos aliados a enviarem pouca ajuda.
A devastação do furacão mais a perspectiva bem-vinda de fome em massa e os danos ecológicos, a longo prazo, ajudaram os nossos esforços (ou reforçaram os nossos objetivos). Nós queríamos que os nicaraguenses morressem de fome para que pudéssemos acusar os sandinistas de má gestão económica. Já que não estavam sob o nosso controle, deveriam sofrer até a morte. Terceiro, usámos ardis diplomáticos para esmagar a Nicarágua. Como escreveu Tony Avirgan no
jornal costarriquenho "Mesoanzerica", "os sandinistas caíram numa trama perpetrada pelo presidente costarriquenho Oscar Arias e outros presidentes centro-americanos, o que lhes custou as eleições de fevereiro [1990]". Para a Nicarágua, o plano de paz de agosto de 1987 era um bom negócio, lembrou Avirgan: eles adiantariam as eleições nacionais em alguns meses e permitiriam a observação internacional, como já tinham feito em 1984, "em troca de terem os contras desmobilizados e a guerra levada a um fim...
O governo nicaraguense cumpriu o que foi exigido pelo plano de paz, entretanto, ninguém mais
prestou a mais leve atenção ao plano. Arias, a Casa Branca e o Congresso nunca tiveram a mínima intenção de cumprir qualquer aspecto do plano. Os EUA triplicaram virtualmente os vôos da CIA em reforço aos contras. Em poucos meses, o plano de paz estava totalmente sepultado. Assim que a campanha eleitoral começou, os Estados Unidos tornaram bem claro que o embargo económico, que estava a estrangular o país, e o terror dos contras continuariam se os sandinistas ganhassem a eleição. Teríamos de ser no mínimo nazistas ou estalinistas incorrigíveis para considerar uma eleição conduzida sob tais condições como justa e livre. Ao sul das nossas fronteiras, poucos sucumbiram a tais ilusões. Se uma coisa como essa tivesse sido praticada pelos nossos inimigos,... eu deixo a reacção dos meios de comunicação por conta da sua imaginação. O incrível foi que os sandinistas ainda obtiveram 40% dos votos, enquanto as manchetes do "The New York Times" proclamavam que os americanos estavam "unidos na alegria" com essa "vitória do jogo limpo americano”. As façanhas dos Estados Unidos na América Central, nos últimos 15 anos, são uma enorme tragédia, não só pelo avassalador custo humano, mas também porque há uma década havia reais perspectivas de progresso em direcção a uma democracia significativa, comprometida com as necessidades humanas, já com os primeiros sucessos visíveis em El Salvador, Guatemala e Nicarágua. Esses esforços poderiam ter funcionado e ensinado lições úteis a outros flagelados com problemas semelhantes, o que logicamente era o que os estrategas norte-americanos mais temiam. A ameaça foi abortada com sucesso, talvez para sempre.

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