27 de novembro de 2008

Os principais objectivos da política externa dos Estados Unidos da América IX. Por Noam Chomsky.

A crucificação de El Salvador.




Durante muitos anos, a repressão, a tortura e o assassinato foram praticados em El Salvador por
ditadores instalados e sustentados pelo nosso governo (E.U.A.), um assunto que não suscitou qualquer interesse na opinião pública americana. Para além disso, a história nunca foi realmente contada. No final da década de 1970, entretanto, o governo norte-americano começou a preocupar-se com dois factos. Um era o de que Somoza, o ditador da Nicarágua, estava a perder o controle do país e os Estados Unidos estavam a perder a principal base para os seus exercícios de força na região. Um segundo perigo era talvez o mais ameaçador. Em El Salvador, nos anos de 1970, houve um crescimento das chamadas "organizações populares" - associações camponesas, cooperativas, sindicatos e movimentos eclesiais de base - que se reuniam em torno de grupos de auto- ajuda, etc. Essas movimentações aumentaram a ameaça à democracia e, em fevereiro de 1980, o arcebispo de El Salvador, Don Oscar Romero, enviou uma carta ao presidente Carter em que implorava o não envio de ajuda militar para a junta que governava o país. Ele dizia que tal ajuda seria usada para "estimular a injustiça e a repressão contra organizações populares" que lutavam "pelo respeito dos seus direitos humanos mais elementares" (é desnecessário dizer que isso dificilmente seria notícia em Washington). Poucas semanas depois, o arcebispo Romero foi assassinado enquanto celebrava uma missa. O neonazista Roberto D'Aubuisson foi considerado totalmente responsável pelo assassinato (entre outras incontáveis atrocidades).
D'Aubuisson foi "líder vitalício" do Arena, partido que ainda governa El Salvador; os membros
desse partido, como o ex-presidente Alfredo Cristiani, tinham de fazer um juramento de sangue de lealdade para com ele.

Dez anos depois, milhares de camponeses e pobres da região urbana participaram numa missa
comemorativa, juntamente com inúmeros bispos estrangeiros, mas os Estados Unidos foram
notados pela sua ausência. A Igreja salvadorenha propôs formalmente a canonização de Romero.
Tudo isso se passou com raras referências no país que subvencionou e treinou os assassinos de Dom Romero. O "The New York Times", o "jornal testemunha", não publicou nenhum editorial sobre o assassinato quando ele ocorreu, nem nos anos seguintes, e também nenhum editorial ou reportagem foi feita sobre a comemoração. Em 7 de março de 1980, duas semanas antes do assassinato, foi instituído um estado de sítio em El Salvador, e a guerra contra a população começou com força total (e com o contínuo apoio e envolvimento dos Estados Unidos). O primeiro e principal ataque foi o grande massacre de Rio Sumpul, uma operação militar coordenada pelos exércitos hondurenhos e salvadorenhos, na qual pelo menos seiscentas pessoas foram massacradas. Crianças foram cortadas em pedaços com facões. mulheres foram torturadas e afogadas. Dias depois, partes dos corpos ainda eram encontradas no rio.Havia observadores da Igreja, de modo que as informações saíam imediatamente, mas os principais meios de comunicação não acharam nada que valesse uma reportagem. Os camponeses foram as principais vítimas dessa guerra, ao lado de líderes sindicais, estudantes, padres ou qualquer outro suspeito de trabalhar pelos interesses do povo. No último ano do governo Carter, 1980, o número de mortes chegou a algo em torno de dez mil, aumentando para cerca de
13.000 já sob o comando da era Reagan.

Em outubro de 1980, o novo arcebispo condenou "a guerra de extermínio e genocídio contra a
indefesa população civil", desencadeada pelas forças de segurança. Dois meses depois, estas foram aclamadas pelo seu "heróico serviço ao lado do povo, contra a subversão" pelo "moderado" favorito dos Estados Unidos, José Napoleón Duarte, ao ser nomeado presidente civil da junta.
O papel do "moderado" Duarte era manter a fachada para os dirigentes militares e garantir-lhes a contínua chegada de fundos norte-americanos, mesmo depois de as forças armadas terem violentado e assassinado quatro freiras americanas, o que provocou protestos nos E.U.A.. Trucidar salvadorenhos é uma coisa, porém violentar e matar freiras americanas é definitivamente um erro de relações públicas. Os meios de comunicação de massa evitaram e abafaram a história, seguindo a liderança do governo Carter e a sua comissão de investigação.
Os recém-chegados abutres de Reagan foram mais longe, tratando de justificar a atrocidade, nomeadamente o ministro de Estado Alexander Haig e a embaixatriz das Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick. Mas ainda foi considerado se valia a pena ter um julgamento-farsa, enquanto anos mais tarde desculpavam a junta assassina - e naturalmente o seu financiador.

Os jornais independentes de El Salvador, que poderiam ter informado dessas atrocidades, foram
destruídos. Embora eles fossem abertamente a favor das empresas, eram ainda indisciplinados
demais para o gosto dos militares. O problema foi resolvido entre 1980 e 1981, quando o editor de um desses jornais foi morto pelas forças de segurança e outro fugiu para o exílio. Como de
costume, esses acontecimentos foram considerados muito insignificantes para merecer mais que
algumas palavras nos jornais norte-americanos. Em novembro de 1989, seis padres jesuítas, cozinheira e a filha dela foram assassinados pelo Exército. Naquela mesma semana, pelo menos mais 28 civis salvadorenhos também foram mortos, inclusive a dirigente do principal sindicato, a líder de uma organização universitária, nove membros de uma cooperativa agrária indígena e dez estudantes universitários. As agências de notícias transmitiram uma reportagem por intermédio do correspondente da A.P. Douglas Grant Mine, relatando como os soldados entraram num bairro operário, próximo da capital de San Salvador, capturaram seis homens e uma criança de 14 anos, por medida de segurança. Em seguida, colocaram todos contra a parede fuzilaram-nos. "Eles não eram padres nem defensores dos direitos humanos", escreveu Mine, mas, mesmo assim, essas mortes passaram em grande parte despercebidas, assim como a reportagem de Mine. Os jesuítas foram assassinados pelo Batalhão Atlacatl, uma unidade de elite criada, treinada e equipada pelos Estados Unidos. A unidade foi formada em março de 1981, quando 15 especialistas em contra-insurgência, da Escola de Forças Especiais do Exército norte-americano, foram enviados para El Salvador. Desde o início, o Batalhão esteve envolvido no extermínio em massa. Um formador militar norte-americano descreveu os seus soldados como "particularmente ferozes... Nós tivémos sempre dificuldade em conseguir que eles capturassem os prisioneiros em vez das suas orelhas". Em dezembro de 1981, o Batalhão participou numa operação na qual foram mortos mais de mil civis, numa verdadeira orgia de estupros, incêndios e assassinatos. Mais tarde, o Batalhão esteve ainda envolvido em bombardeios de cidades, matança de centenas de civis por fuzilamento, afogamento e outros métodos bárbaros. A grande maioria das vítimas eram mulheres, crianças e velhos. O Batalhão Atlacatl estava a ser treinado pelas Forças Especiais norte-americanas, pouco antes de matar os jesuítas. Esta tem sido a norma em toda a existência do Batalhão. Alguns dos piores ataques ocorreram justamente quando o Batalhão recém-chegara dos E.U.A..

Na "inexperiente democracia" de El Salvador, jovens adolescentes de 13 anos eram capturados em assaltos a favelas e acampamentos de refugiados e, em seguida, forçados a entrar para o Exército, onde eram doutrinados em rituais copiados dos SS nazis, inclusive com brutalização e estupros, preparando-os assim para os extermínios, que frequentemente tinham características sexuais e satânicas. A natureza desse tipo de treino do Exército salvadorenho foi descrita por um desertor, que recebeu asilo no Texas, em 1990. O seu nome foi mantido em sigilo para protegê-lo dos esquadrões da morte salvadorenhos, apesar do pedido do Departamento de Estado para que ele fosse enviado de volta a El Salvador. Segundo esse desertor, os recrutas tinham de matar cães e abutres (não os certos porém...), mordendo-lhes a garganta e torcendo-lhes a cabeça, além de terem de ver os outros soldados torturarem e matarem suspeitos dissidentes, arrancando-lhes as unhas, cortando-lhes a cabeça e partes do corpo. Em seguida,
brincavam com os bocados para se divertirem.
Um outro depoimento, de um membro confesso de um esquadrão da morte ligado ao Batalhão Atlacatl, César Vielman Joya Martínez, deu detalhes do envolvimento dos conselheiros americanos com o governo salvadorenho nas actividades dos esquadrões da morte. O governo Bush fez todos os possíveis para que o calassem e o enviassem de volta para uma provável morte em El Salvador, apesar do apelo das organizações de Direitos Humanos e dos pedidos do Congresso para que o seu testemunho fosse ouvido (o mesmo tratamento foi dado à principal testemunha do assassinato dos jesuítas). Os resultados do treino militar salvadorenho são descritos no periódico jesuíta America por Daniel Santiago, padre católico em missão em EI Salvador. Ele conta a história de uma camponesa que, um dia ao voltar para casa, encontrou os seus três filhos, a sua mãe e a sua irmã sentados à mesa, todos com as cabeças decapitadas, colocadas cuidadosamente em frente aos corpos, com as mãos dispostas para cima "como se estivessem acariciando a própria cabeça". Como os assassinos da Guarda Nacional Salvadorenha tiveram problemas em manter no lugar a cabeça de um bebé, pregaram-na, então, às mãos dele. Depois, um grande balde plástico, cheio de sangue, foi esteticamente exposto no centro da mesa.
Segundo o reverendo Santiago, cenas assim macabras não são raras. “As pessoas não são só assassinadas pelos esquadrões da morte em El Salvador. Elas são decapitadas e as suas cabeças são postas em estacas e exibidas como parte da paisagem. Os homens não são só estripados pela Polícia do Tesouro Salvadorenho; os seus genitais são decepados e colocados dentro da boca da vítima. As mulheres salvadorenhas não são só violadas pela Guarda Nacional, os seus
ventres são cortados e usados para cobrir o rosto. Não basta matar crianças; elas são arrastadas
sobre arames farpados até a carne se soltar dos ossos, enquanto os pais são obrigados a assistir à cena.” O padre Santiago continua a afirmar que violências dessa natureza aumentaram bastante desde que a Igreja começou a formar associações camponesas e grupos de auto-ajuda na tentativa de organizar a população pobre.

De uma forma geral, o nosso projeto em El Salvador tem sido bem-sucedido. As organizações populares foram dizimadas, como havia previsto o arcebispo Romero. Dezenas de milhares de pessoas foram trucidadas e mais de um milhão de salvadorenhos tornaram-se refugiados. Este foi um dos mais sórdidos episódios da história americana - e tem havido muita concorrência.

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