13 de abril de 2012

Tempos de amnésia, mentira e retrocesso.

Embora sempre se deva aconselhar cautela em juízos deste tipo ou similares, atrevo-me a arriscar que vivemos uma das épocas - não, não é uma mera conjuntura - em que aquilo a que muitos, de uma ou de outra forma, temos chamado a crise da memória política e a profunda erosão da noção de processo histórico mais estão pesando na forma como os cidadãos estruturam a sua opinião sobre os factos, as políticas e os acontecimentos que sofrem ou decorrem quotidianamente diante dos seus olhos.


Com efeito, designadamente o cidadão comum que não tem uma relação intensa com a política e com o compromisso político só pode sentir-se perdido, aturdido e desorientado não apenas por força da vertiginosa sucessão de acontecimentos e medidas que se repercutem nos interesses e na sua vida e na do seu país mas também e sobretudo por anos e anos de informação fragmentada e descontextualizada e de intoxicação mediática sobre «fatalidades», «inevitabilidades» e «faltas de alternativas», ou seja um conjunto de sofismas martelados até à exaustão precisamente para assegurar a durabilidade e impunidade de opções políticas tomadas e para gerar um correspondente efeito de apatia, conformismo e resignação por parte dos cidadãos.

Dito de outra forma, basta reparar se é ou não verdade se hoje desfilam perante nós e desabam sobre nós, todos os dias, semanas e meses, notícias sobre problemas, escolhas, decisões, mais e mais medidas de austeridade que nos são apresentadas com se existissem e vivessem de per si e como se não tivessem nenhum nexo próximo ou distante com problemas, opções e decisões tomadas há cinco, dez ou vinte anos.

E, como será fácil de entender, são esta aposta no apagamento da memória colectiva e esta profundíssima rasura da noção de processo histórico que muito facilitam essa repugnante farsa da democracia que se pode exemplificar, por exemplo, com aqueles protagonistas políticos que hoje se apresentam como excelsos e ardorosos combatentes contra o défice ou a dívida mesmo que, no anterior exercício de funções governativas, para um e para a outra bastante tenham contribuído ou, outro exemplo, nos apareçam a verter lágrimas abundantes sobre o declínio da produção nacional, sobre o abandono dos nossos campos, o desaproveitamento do nosso mar ou a desertificação do interior deixando sempre na sombra que, ao longo de mais de 30 anos, as políticas que defenderam e conscientemente aplicaram a outro resultado não podiam ter conduzido.

E isto para já não falar no exemplo - da maior actualidade - de todos aqueles que hoje, sem pudor nem memória, seja à direita, ao centro ou no centro-esquerda, reconhecem com infinita calma que a adesão de Portugal ao euro afectou obviamente a competitividade da economia portuguesa (Passos Coelho dixit numa entrevista televisiva) ou que o euro padeceu de graves erros na sua criação e arquitectura, sempre escondendo e não assumindo que, durante mais de uma década, foram acriticamente deslumbrados com a moeda única e procuraram trucidar e isolar politicamente todos quantos se atreveram atempadamente a levantar reservas, a fazer perguntas, a exigir esclarecimentos e estudos, a esboçar ou desenhar alternativas.

Neste contexto, creio que poderá ter alguma utilidade chamar a atenção, sem preocupações de hierarquia e sem qualquer carácter exaustivo, para três grossas falsidades e truques duradouros que, tendo incidências diferenciadas, dada a indiscutível hegemonia que têm no discurso político ou na opinião publicada, têm desempenhado um papel importante na formatação das consciências de amplos sectores sociais.

A primeira e talvez a mais estruturalmente grave dessas falsidades consiste em apresentar todo um vastíssimo conjunto de elementos - desde certos efeitos mais perversos da globalização até às perdas de soberania nacional, desde «os compromissos que Portugal tem de honrar» até aos condicionalismos e constrangimentos externos, desde a ditadura dos mercados e a sua cegueira selvagem até ao nefando papel das agências de rating, passando - como sendo algo que está aí, ponto final, parágrafo, algo que nos foi imposto sem ligarem à nossa vontade, algo que foi caindo do céu aos trambolhões ou algo que, para os mais sofisticados, resulta apenas do normal fluir da evolução das «economias de mercado» (o termo «capitalismo» só teve uma relativamente breve vida e ressurgimento na imprensa mundial no auge da crise de 2008).

Segundo esta ficção ou coreografia minuciosamente estudada, dir-se-ia que, entre muitas outras, não houve uma coisa chamada liberalização dos movimentos de capitais (um artigo recente na insuspeita Le Nouvel Observateur detalhava o papel capital de Mitterand, Delors e outros socialistas franceses no avanço desse processo à escala da Europa), uma coisa chamada Tratado de Maastrich, uma coisa chamada criação da moeda única, uma coisa chamada negociações do Uruguay Round e criação da Organização Mundial do Comércio etc., etc. - ou seja todo um vasto conjunto de instrumentos e decisões de âmbito e efeitos supranacionais que só puderam ser concretizados na base da vontade de Estados soberanos e com as assinaturas manuscritas e a presença em pessoa de primeiros-ministros ou Presidentes da República, incluindo, como é bom de ver, de Portugal.

É por isso que de há muito sustento que, ao contrário do que é corrente, os únicos que tem legitimidade política e ética para falar de «condicionalismos» ou «constrangimentos externos» são os que a eles se opuseram e nunca por nunca ser aqueles que os defenderam, apoiaram ou subscreveram.

E é também por isso que, nesta matéria, gosto sempre de recordar a corajosa e franca afirmação feita numa sua obra de 1987, ainda muita coisa ia no adro, pelo economista francês (giscardiano) Lionel Stoleru. Propondo que se dê desconto àquele «nós», ela aqui fica para informação e reflexão: «Estes pretendidos «constrangimentos» internacionais somos nós próprios que os quisemos, somos nós próprios que os edificámos e somos nós próprios que, dia após dia, nos empenhamos em os desenvolver. Nós não temos mais liberdade de acção porque nós não quisemos mais ter liberdade de acção» (in L'Ambition Internationale).

Uma segunda importante falsidade teve largo curso em Portugal nos meses que precederam o pedido de demissão do Governo do PS dirigido por José Sócrates e ganhou novo fôlego com a política executada pelo novo governo do PSD dirigido por Passos Coelho e tem sido protagonizada por sectores ou personalidades do PS que, na ânsia de descobrirem ou inventarem territórios verbais de demarcação com a direita, passaram a dirigir as suas críticas às principais orientações no curso da presente crise à União Europeia e ao facto de a grande maioria dos países membros ter governos de direita.

Assim convenientemente embalados, esquecem-se obviamente da evidência historicamente comprovada de que todos os tratados e passos de evolução quer da então CEE quer da posterior UE se basearam nos consensos e acordos entre os partidos democratas-cristãos e os partidos social-democratas ou socialistas e que, desde o início da chamada «construção europeia» até hoje a história não regista nenhuma grave ou dramática confrontação entre essas duas famílias políticas. E até se esquecem concretamente que o próprio Mário Soares (personalidade que tem a especial característica de vergastar o neo-liberalismo em todo o mundo e nunca o ver quando está à frente dos seus olhos no nosso país, nomeadamente quando é aplicado pelo PS), num passado não muito distante, verberou criticamente o facto de ter sido precisamente nos anos em que os socialistas governavam 11 dos então quinze países da UE que as orientações neoliberais tiveram um maior impulso e desenvolvimento na Europa.

E, peço desculpa por qualquer coisinha, mas não posso fechar este ponto sem aludir a um inquietante e desastroso traço comum entre governos de direita e governos do PS em relação à União Europeia: é que sabe-se que Portugal é, de direito e com iguais direitos, membro pleno da União Europeia, mas isso nunca se nota nas orientações, nas atitudes e nas posições que os governos nacionais ali defendem, mais parecendo que Portugal é ainda, 25 anos depois de ter sido admitido, um país candidato à adesão.

A terceira falsidade consiste em fazer crer que todo o brutal e desumano conjunto de ataques, agressões, medidas de austeridade e retrocessos que já estava desenhado no memorando de entendimento entre a troika estrangeira - UE, BCE e FMI - e a troika nacional - Governo do PS, PSD e CDS - e tem vindo a ser alargado pelo actual governo PSD-CDS são uma mera decorrência da necessidade de conter o défice ou enfrentar o problema da dívida.

Ora, mesmo deixando generosa e benevolentemente de lado a minha (e a de muitos outros) convicção profunda que o conjunto das medidas adoptadas não resolverá nenhum dos problemas mais invocados, antes os agravará deixando um rasto de empobrecimento e destruição, a verdade é que há toda uma série de medidas adoptadas, impostas ou propostas pelo governo que não tem a mais pequena relação com o défice, com a competitividade ou com o pagamento dos encargos com a dívida, bastando para o efeito citar, a título de curto exemplo, a acrescida meia hora de trabalho diário, o corte de feriados, a baixa da TSU para as empresas, etc., etc.

Verdadeiramente o que está a acontecer é que, para a direita portuguesa e europeia e para os interesses de classe que representa, a crise, o défice e a dívida constituem uma oportunidade de ouro e um incomparável pretexto e cobertura para um desde sempre desejado e ansiado ajuste de contas com os avanços sociais, económicos e políticos filhos da Revolução de Abril, para estabelecer um ainda maior desequilíbrio nas relações entre o capital e o trabalho (veja-se como o princípio democrático básico da contratação colectiva é agora quase semanalmente espezinhado por decretos ou leis governamentais) e, la crème de la crème, e promover uma brutal, devastadora e mafiosa transferência de recursos financeiros e património da esfera pública para o grande capital.

Aqui chegado, entendo não dever ocultar dos leitores que, embora o escrevesse pouco, sou dos que, com fundamento em experiências políticas anteriores, muitas vezes pensaram que, dado que a sua etiqueta de «socialista» anestesiava largos sectores populares, o PS era o mais eficaz na execução da política de direita e que não seria fatal como o destino que um governo de direita fosse necessariamente mais longe na política de agressão aos interesses populares, precisamente por carência de base social de suporte e por passar a contar com uma mais viva e real oposição do PS e sobretudo dos seus eleitores.

Nunca sabemos como teria sido de outro modo e não pretendo ter razão a toda a força. Mas creio que as minhas conjecturas a tal respeito (que, sublinhe-se, não interferiam em nada nas minhas opções de voto e de pertença e projecto políticos) não se confirmaram por consequência de dois factores distintos de situações precedentes: a primeira é a própria situação de crise e a sua dramatização e interiorização em termos erróneos pela maioria do eleitorado; e a segunda é o facto de o PS estar amarrado ao e prisioneiro do memorando de entendimento com a troika, o que constitui uma parcial fonte de legitimação de parte substancial da política do PSD, que este naturalmente e convenientemente explora e continuará a explorar.

Sim, como o título propositadamente diz, estes são tempos de amnésia, de mentira e de retrocesso. Mas isso, nem deveria ser preciso dizê-lo, é apenas um escolhido ângulo de análise e um fragmento, ainda que importante, da realidade actual. Porque estes são também tempos de uma vasta e muito diversificada torrente de lutas, de uma indignação e consciencialização que tendem a crescer e não a diminuir, de um processo de confluência de descontentamentos, iniciativas e de capacidades combativas que podem não satisfazer os que querem resultados palpáveis e imediatos para o que é, pelas situações concretas e correlações de forças, díficil e eventualmente moroso, mas são a única alternativa honrosa à rendição e à resignação humilhantes e são a única esperança de salvar os portugueses e Portugal de um bárbaro retrocesso civilizacional.

Artigo aqui.



4 de abril de 2012

John Perkins. “Portugal está a ser assassinado, como muitos países do terceiro mundo já foram”

Chamou-se a si próprio assassino económico no livro “Confessions of an Economic Hit Man”, que se tornou bestseller do “New York Times”.

Em tempos consultor na empresa Chas. T. Main, John Perkins andou dez anos a fazer o que não devia, convencendo países do terceiro mundo a embarcar em projectos megalómanos, financiados com empréstimos gigantescos de bancos do primeiro mundo. Um dia, estava nas Caraíbas, percebeu que estava farto de negócios sujos e mudou de vida. Regressou a Boston e, para compensar os estragos que tinha feito, decidiu usar os seus conhecimentos para revelar ao mundo o jogo que se joga nos bastidores financeiros.Como se passa de assassino económico a activista? Em primeiro lugar é preciso passar-se por uma forte mudança de consciência e entender o papel que se andou a desempenhar. Levei algum tempo a compreender tudo isto. Fui um assassino económico durante dez anos e durante esse período achava que estava a agir bem. Foi o que me ensinaram e o que ainda ensinam nas faculdades de Gestão: planear grandes empréstimos para os países em desenvolvimento para estimular as suas economias. Mas o que vi foi que os projectos que estávamos a desenvolver, centrais hidroeléctricas, parques industriais, e outras coisas idênticas, estavam apenas a ajudar um grupo muito restrito de pessoas ricas nesses países, bem como as nossas próprias empresas, que estavam a ser pagas para os coordenar. Não estávamos a ajudar a maioria das pessoas desses países porque não tinham dinheiro para ter acesso à energia eléctrica, nem podiam trabalhar em parques industriais, porque estes não contratavam muitas pessoas. Ao mesmo tempo, essas pessoas estavam a tornar-se escravos, porque o seu país estava cada mais afundado em dívidas. E a economia, em vez de investir na educação, na saúde ou noutras áreas sociais, tinha de pagar a dívida. E a dívida nunca chega a ser paga na totalidade. No fim, o assassino económico regressa ao país e diz-lhes “Uma vez que não conseguem pagar o que nos devem, os vossos recursos, petróleo, ou o que quer que tenham, vão ser vendidos a um preço muito baixo às nossas empresas, sem quaisquer restrições sociais ou ambientais”. Ou então, “Vamos construir uma base militar na vossa terra”. E à medida que me fui apercebendo disto a minha consciência começou a mudar. Assim que tomei a decisão de que tinha de largar este emprego tudo foi mais fácil. E para diminuir o meu sentimento de culpa senti que precisava de me tornar um activista para transformar este mundo num local melhor, mais justo e sustentável através do conhecimento que adquiri. Nessa altura a minha mulher e eu tivemos um bebé. A minha filha nasceu em 1982 e costumava pensar como seria o mundo quando ela fosse adulta, caso continuássemos neste caminho. Hoje já tenho um neto de quatro anos, que é uma grande inspiração para mim e me permite compreender a necessidade de viver num sítio pacífico e sustentável.

Houve algum momento em particular em que tenha dito para si mesmo “não posso fazer mais isto”? Sim, houve. Fui de férias num pequeno veleiro e estive nas Ilhas Virgens e nas Caraíbas. Numa dessas noites atraquei o barco e subi às ruínas de uma antiga plantação de cana-de-açúcar. O sítio era lindo, estava completamente sozinho, rodeado de buganvílias, a olhar para um maravilhoso pôr do Sol sobre as Caraíbas e sentia-me muito feliz. Mas de repente cheguei à conclusão que esta antiga plantação tinha sido construída sobre os ossos de milhares de escravos. E depois pensei como todo o hemisfério onde vivo foi erguido sobre os ossos de milhões de escravos. E tive também de admitir para mim mesmo que também eu era um esclavagista, porque o mundo que estava a construir, como assassino económico, consistia, basicamente, em escravizar pessoas em todo o mundo. E foi nesse preciso momento que me decidi a nunca mais voltar a fazê-lo. Regressei à sede da empresa onde trabalhava em Boston e demiti-me.
E qual foi a reacção deles? De início ninguém acreditou em mim. Mas quando se aperceberam de que estava determinado tentaram demover-me. Fizeram-me propostas muito interessantes. Mas fui-me embora à mesma e deixei por completo de me envolver naquele tipo de negócios.
Diz que os assassinos económicos são profissionais altamente bem pagos que enganam os países subdesenvolvidos, recorrendo a armas como subornos, relatórios falsificados, extorsões, sexo e assassinatos. Pode explicar às pessoas que não leram o seu livro como tudo isto funciona? Basicamente, aquilo que fazíamos era escolher um país, por exemplo a Indonésia, que na década de 70 achávamos que tinha muito petróleo do bom. Não tínhamos a certeza, mas pensávamos que sim. E também sabíamos que estávamos a perder a guerra no Vietname e acreditávamos no efeito dominó, ou seja, se o Vietname caísse nas mãos dos comunistas, a Indonésia e outros países iriam a seguir. Também sabíamos que a Indonésia tinha a maior população muçulmana do mundo e que estava prestes a aliar-se à União Soviética, e por isso queríamos trazer o país para o nosso lado. Fui à Indonésia no meu primeiro serviço e convenci o governo do país a pedir um enorme empréstimo ao Banco Mundial e a outros bancos, para construir o seu sistema eléctrico, centrais de energia e de transmissão e distribuição. Projectos gigantescos de produção de energia que de forma alguma ajudaram as pessoas pobres, porque estas não tinham dinheiro para pagar a electricidade, mas favoreceram muito os donos das empresas e os bancos e trouxeram a Indonésia para o nosso lado. Ao mesmo tempo, deixaram o país profundamente endividado, com uma dívida que, para ser refinanciada pelo Fundo Monetário Internacional, obrigou o governo a deixar as nossas empresas comprarem as empresas de serviços básicos de utilidade pública, as empresas de electricidade e de água, construir bases militares no seu território, entre outras coisas. Também acordámos algumas condicionantes, que garantiam que a Indonésia se mantinha do nosso lado, em vez de se virar para a União Soviética ou para outro país que hoje em dia seria provavelmente a China.

Trabalhou de muito perto com o Banco Mundial? Muito, muito perto. Muito do dinheiro que tínhamos vinha do Banco Mundial ou de uma coligação de bancos que era, geralmente, liderada pelo Banco Mundial.
Sugere no seu livro que os líderes do Equador e do Panamá foram assassinados pelos Estados Unidos. No entanto, existem vários historiadores que defendem que isso não é verdade. O que acha que aconteceu com Jaime Roldós e Omar Torrijos? Não existem provas sólidas quer do que aconteceu no Equador, com Roldós, quer do que se passou no Panamá, com Torrijos. Porém, existem muitas provas circunstanciais. Por exemplo, Roldós foi o primeiro a morrer, num desastre de avião em Maio de 1981, e a área do acidente foi vedada, ninguém podia ir ao local onde o avião se despenhou, excepto militares norte-americanos ou membros do governo local por eles designados. Nem a polícia podia lá entrar. Algumas testemunhas-chave do desastre morreram em acidentes estranhos antes de serem chamadas a depor. Um dos motores do avião foi enviado para a Suíça e os exames mostram que parou de funcionar quando estava ainda no ar e não ao chocar contra a montanha. Isto é, existem provas circunstanciais tremendas em torno desta morte, e além disso todos estavam à espera que Jaime Roldós fosse derrubado ou assassinado porque não estava a jogar o nosso jogo. Logo depois de o seu avião se ter despenhado, Omar Torrijos juntou a família toda e disse: “O meu amigo Jaime foi assassinado e eu vou ser o próximo, mas não se preocupem, alcancei os objectivos que queria alcançar, negociei com sucesso os tratados do canal com Jimmy Carter e esse canal pertence agora ao povo do Panamá, tal como deve ser. Por isso, depois de eu ser assassinado, devem sentir-se bem por tudo aquilo que conquistei.” A verdade é que os EUA, a CIA e pessoas como o Henry Kissinger admitiram que o nosso país tinha derrubado Salvador Allende, no Chile; Jacobo Arbenz, na Guatemala; Mohammed Mossadegh, no Irão; participámos no afastamento de Patrice Lumumba, no Congo; de Ngô Dinh Diem, no Vietname. Existem inúmeros documentos sobre a história dos EUA que provam que fizemos estas coisas e continuamos a fazê-las. Sabe-se que estivemos profundamente envolvidos, em 2009, no derrube no presidente Manuel Zelaya, nas Honduras, e na tentativa de afastar Rafael Correa, no Equador, também há não muito tempo. Os EUA admitiram muitas destas coisas e pensar que eles não estiveram envolvidos nos homicídios de Roldós e Torrijos... Estes dois homens foram assassinados quase da mesma forma, num espaço de três meses. Ambos tinham posições contrárias aos EUA e às suas empresas e estavam a assumir posições fortes para defender os seus povos – é pouco razoável pensar o contrário.

Algumas pessoas acusam-no de ser um teórico da conspiração. O que tem a dizer sobre isso? Bem, não sou, de modo nenhum, um teórico da conspiração. Não acredito que exista uma pessoa ou um grupo de pessoas sentadas no topo a tomar todas as decisões. Mas torno muito claro no meu último livro, “Hoodwinked” (2009), e também em “Confessions of an Economic Hit Man” (2004) – editado em Portugal pela Pergaminho em 2007 com o título “Confissões de Um Mercenário Económico: a Face Oculta do Imperialismo Americano” –, que as multinacionais são movidas por um único objectivo que é maximizar os lucros, independentemente das consequências sociais e ambientais. Estes últimos são novos objectivos que não eram ensinados quando estudei Gestão, no final dos anos 60. Ensinaram-me que havia apenas este objectivo entre muitos outros, por exemplo tratar bem os funcionários, dar-lhes uma boa assistência na saúde e na reforma, ter boas relações com os clientes e os fornecedores, e também ser um bom cidadão, pagar impostos e fazer mais que isso, ajudar a construir escolas e bibliotecas. Tudo se agravou nos anos 70, quando Milton Friedman, da escola de economia de Chicago, veio dizer que a única responsabilidade no mundo dos negócios era maximizar os lucros, independentemente dos custos sociais e ambientais. E Ronald Reagan, Margaret Thatcher e muitos outros líderes mundiais convenceram-se disso desde então. Todas estas empresas são orientadas segundo este objectivo e quando alguma coisa o ameaça, seja um acordo de comércio multilateral seja outra coisa qualquer, juntam-se para garantir que o mesmo é protegido. Isto não é uma conspiração, uma conspiração é ilegal, isto que fazem não é. No entanto, é extremamente prejudicial para a economia mundial.Também escreveu que o objectivo último dos EUA é construir um império global. Como vê a recente estratégia norte-americana contra a China e o Irão?Actualmente, podemos dizer que o novo império não é tanto americano como formado por multinacionais. Penso que a ditadura das grandes empresas e dos seus líderes forma hoje a versão moderna desse império. Repito, isto não é uma conspiração, mas todos eles são movidos por esse objectivo de que falámos anteriormente.Mas vários especialistas defendem que estamos num cenário de terceira guerra mundial, com a China, a Rússia e o Irão de um lado e os EUA, a União Europeia (UE) e Israel do outro. E que toda a conversa de Washington em torno do programa nuclear iraniano não passa de uma grande mentira. Não acredito que todo este conflito seja motivado por armas nucleares. Na verdade, vários estudos recentes, alguns deles das mais respeitadas agências de informações norte-americanas, mostram que não existem armas nucleares no Irão. E acredito que tudo isto não se deve apenas aos recursos iranianos mas também à ameaça de Teerão de vender petróleo no mercado internacional numa moeda que não o dólar, uma ameaça também feita por Muammar Kadhafi, na Líbia, e Saddam Hussein, no Iraque. Os norte-americanos não gostam que ameacem o dólar e não gostam que ameacem o seu sistema bancário, algo que todos esses líderes fizeram – o líder do Irão, o líder do Iraque, o líder da Líbia. Derrubaram dois deles e o terceiro ainda lá está. Penso que é disto que se trata. Não tenho dúvidas de que a Rússia está a gostar de ver a agitação entre a UE e o Irão, porque Moscovo tem muito petróleo e, se os fornecedores iranianos deixarem de vender, o preço do petróleo vai subir, o que será uma grande ajuda para a Rússia. É difícil acreditar que qualquer destes países queira mesmo entrar numa terceira guerra mundial. No fundo, o que querem é estar constantemente a confundir as pessoas, parecendo que querem entrar em conflito e ajudar a alimentar as máquinas de guerra, porque isso ajuda uma série de grandes empresas.Como durante a Guerra Fria? Sim, como durante a Guerra Fria, porque isso é bom para os negócios. No fundo, estes países estão todos a servir os interesses das grandes empresas. Há algumas centenas de anos, a geopolítica era maioritariamente liderada por organizações religiosas; depois os governos assumiram esse poder. Agora chegámos à fase em que a geopolítica é conduzida em primeiro lugar pelas grandes multinacionais. E elas controlam mesmo os governos de todos os países importantes, incluindo a Rússia, a China e os EUA. A economia da China nunca poderia ter crescido da forma que cresceu se não tivesse estabelecido fortes parcerias com grandes multinacionais. E todos estes países são muito dependentes destas empresas, dos presidentes destas empresas, que gostam de baralhar as pessoas, porque constroem muitos mísseis e todo o tipo de armas de guerra. É uma economia gigante. A economia norte-americana está mais baseada nas forças armadas que noutra coisa qualquer. Representa a maior fatia do nosso orçamento oficial e uma parte maior ainda do nosso orçamento não oficial. Por isso tanto a guerra como a ameaça de guerra são muito boas para as grandes multinacionais. Mas não acredito que haja alguém que nos queira ver de facto entrar em guerra, dada a natureza das armas. Penso que todas as pessoas sabem que seria extremamente destrutivo.

Como avalia o trabalho de Barack Obama enquanto presidente dos EUA? Penso que se esforçou muito por agir bem, mas está numa posição extremamente vulnerável. Assim que alguém entra na Casa Branca, sejam quais forem as suas ideias políticas, os seus motivos ou a sua consciência, sabe que é muito vulnerável e que o presidente dos EUA, ou de outro país importante, pode ser facilmente afastado. Nalgumas partes do mundo, como a Líbia ou o Irão, talvez só com balas o seu poder possa ser derrubado, mas em países como os EUA um líder pode ser afastado por um rumor ou uma acusação. O presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, ver a sua carreira destruída por uma empregada de quarto de um hotel, que o acusou de violação, foi um aviso muito forte a Obama e a outros líderes mundiais. Não estou a defender Strauss-Kahn – não faço a mínima ideia de qual é a verdade por trás do que aconteceu, mas o que sei é que bastou uma acusação de uma empregada de quarto para destruir a sua carreira, não só como director do FMI mas também como potencial presidente francês. Bill Clinton também foi afastado por um escândalo sexual, mas no tempo de John Kennedy estas coisas não derrubavam presidentes. Só as balas. Porém, descobrimos com Bill Clinton que um escândalo sexual – e não é preciso ser uma coisa muito excitante, porque aparentemente ele nem sequer teve sexo com a Monica Lewinsky, fizeram uma coisa qualquer com um charuto que já não me lembro – foi o suficiente para o descredibilizar. Por isso Obama está numa posição muito vulnerável e tem de jogar o jogo e fazer o melhor que pode dentro dessas limitações. Caso contrário, será destruído.

No fim do ano passado escreveu um artigo onde afirmava que a Grécia estava a ser atacada por assassinos económicos. Acha que Portugal está na mesma situação? Sim, absolutamente, tal como aconteceu com a Islândia, a Irlanda, a Itália ou a Grécia. Estas técnicas já se revelaram eficazes no terceiro mundo, em países da América Latina, de África e zonas da Ásia, e agora estão a ser usadas com êxito contra países como Portugal. E também estão a ser usadas fortemente nos EUA contra os cidadãos e é por isso que temos o movimento Occupy. Mas a boa notícia é que as pessoas em todo o mundo estão a começar a compreender como tudo isto funciona. Estamos a ficar mais conscientes. As pessoas na Grécia reagiram, na Rússia manifestam-se contra Putin, os latino-americanos mudaram o seu subcontinente na última década ao escolher presidentes que lutam contra a ditadura das grandes empresas. Dez países, todos eles liderados por ditadores brutais durante grande parte da minha vida, têm agora líderes democraticamente eleitos com uma forte atitude contra a exploração. Por isso encorajo as pessoas de Portugal a lutar pela sua paz, a participar no seu futuro e a compreender que estão a ser enganadas. O vosso país está a ser saqueado por barões ladrões, tal como os EUA e grande parte do mundo foi roubado. E nós, as pessoas de todo o mundo, temos de nos revoltar contra os seus interesses. E esta revolução não exige violência armada, como as revoluções anteriores, porque não estamos a lutar contra os governos mas contra as empresas. E precisamos de entender que são muito dependentes de nós, são vulneráveis, e apenas existem e prosperam porque nós lhes compramos os seus produtos e serviços. Assim, quando nos manifestamos contra elas, quando as boicotamos, quando nos recusamos a comprar os seus produtos e enviamos emails a exigir-lhes que mudem e se tornem mais responsáveis em termos sociais e ambientais, isso tem um enorme impacto. E podemos mudar o mundo com estas atitudes e de uma forma relativamente pacífica.Mas as próprias empresas deviam ver que a ditadura das multinacionais é um beco sem saída.Bem, penso que está absolutamente certa. Há alguns meses estive a falar numa conferência para 4 mil CEO da indústria das telecomunicações em Istambul e vou regressar lá, dentro de um mês, para uma outra conferência de CEO e CFO de grandes empresas comerciais, e digo-lhes a mesma coisa. Falo muitas vezes com directores-executivos de empresas e sou muitas vezes chamado a dar palestras em universidades de Gestão ou para empresários e também lhes digo o mesmo. Aquilo que fizemos com esta economia mundial foi um fracasso. Não há dúvida. Um exemplo disso: 5% da população mundial vive nos EUA e, no entanto, consumimos cerca de 30% dos recursos mundiais, enquanto metade do mundo morre à fome ou está perto disso. Isto é um fracasso. Não é um modelo que possa ser replicado em Portugal, ou na China ou em qualquer lado. Seriam precisos mais cinco planetas sem pessoas para o podermos copiar. Estes países podem até querer reproduzi-lo, mas não conseguiriam. Por isso é um modelo falhado e você tem razão, porque vai acabar por se desmoronar. Por isso o desafio é como mudamos isto e como apelar às grandes empresas para fazerem estas mudanças. Obrigando-as e convencendo-as a ser mais sustentáveis em termos sociais e ambientais. Porque estas empresas somos basicamente nós, a maioria de nós trabalha para elas e todos compramos os seus produtos e serviços. Temos um enorme poder sobre elas. Por definição, uma espécie que não é sustentável extingue-se. Vivemos num sistema falhado e temos de criar um novo. O problema é que a maior parte dos executivos só pensa a curto prazo, não estão preocupados com o tipo de planeta que os seus filhos e os seus netos vão herdar.

Podemos afirmar que esta crise mundial foi provocada por assassinos económicos e rotular os líderes da troika como serial killers?Penso que é justo dizer que os assassinos económicos são os homens de mão, nós, os soldados, e os presidentes das grandes multinacionais e de organizações como o Banco Mundial, o FMI ou Wall Street, os generais.
Ainda há dias o “Financial Times” divulgou que os gestores financeiros de Wall Street andavam a tomar testosterona para se tornarem ainda mais competitivos. Isto faz parte do beco sem saída de que está a falar? A sério?! Ainda não tinha ouvido isso, mas não me surpreende nada. No entanto, aquilo que precisamos hoje em dia é de um lado feminino, temos de caminhar na direcção oposta e livrar-nos dessa testosterona. Precisamos de mais líderes mulheres, mulheres reais – não homens vestidos com roupas de mulher, por assim dizer – para trazerem com elas os valores de receptividade e do apoio e encorajarem os homens a cultivar isso neles próprios. Nós, homens, temos de estar muito mais ligados ao nosso lado feminino.

Se fôssemos apresentar esta crise económica à polícia, quem seriam os criminosos a acusar? Pense em qualquer grande multinacional e à frente dessa multinacional estará alguém responsável pela ditadura empresarial, seja a Goldman Sachs, em Wall Street, seja a Shell, a Monsanto ou a Nike. Todos os líderes dessas empresas estão profundamente envolvidos em tudo isto e, da mesma forma, estão os líderes do FMI, do Banco Mundial e de outras grandes instituições bancárias. Detesto estar a dar nomes, estas pessoas estão sempre a mudar de emprego, por isso prefiro apontar os cargos. Eles estão sempre em rotação, por exemplo, o nosso antigo presidente, George W. Bush, veio da indústria petrolífera. A sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, também veio da indústria petrolífera. Já Obama tem a sua política financeira concebida por Wall Street, maioritariamente pela Goldman Sachs. Mudaram-se da empresa para a actual administração norte-americana. A sua política de agricultura é feita por pessoas da Monsanto e de outras grandes empresas do sector. E a parte triste é que assim que o seu tempo expirar em Washington voltam para essas empresas. Vivemos num sistema incrivelmente corrupto. Aquilo a que chamamos política das portas giratórias é só uma outra designação de corrupção extrema.

Notícia aqui.

Perceberam, ou será necessário fazer um desenho?